Folha de S. Paulo


Livro ilustrado resgata história e mostra luta pela sobrevivência do circo

Luli Penna/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 23.ago.2017

Desde criança –ou seja, desde meados da década de 1960–, escuto dizerem que o circo está em vias de desaparecer. Em parte, é verdade: o famoso Circo Garcia, por exemplo, encerrou suas atividades em 2002.

Mas eu já ia dizendo o mesmo do Circo Tihany, surgido em Taubaté em 1951 –só que a companhia, depois de apresentar-se em Las Vegas, na Costa Rica e onde mais você quiser, esteve há poucos anos por várias capitais do Brasil e neste ano tem espetáculos na Argentina e no Paraguai.

Nem se fale do Cirque du Soleil, agendado para São Paulo a partir de outubro. Sem contar os espetáculos de inspiração circense que aparecem no circuito mais erudito, ou as escolas de circo que, hoje, são procurados pelas crianças de classe alta.

Não é nisso em que pensamos, entretanto, quando repetimos que "o circo está morrendo". Pensamos nos picadeiros pobres, vagando pelas cidadezinhas do interior em caminhões mais velhos que seus elefantes e tigres, já aposentados pelas leis de proteção aos animais.

Aí sim, trata-se do "verdadeiro circo". O paradoxo é que o "verdadeiro circo" tem de ter, como uma de suas características permanentes, o fato de estar em decadência. Se não estiver desaparecendo, não é circo.

Nesse sentido, o circo é necessariamente um fato de memória: existe na lembrança do que foi. Está "desaparecendo" sempre, porque na verdade quem morre, a cada dia, é a infância que tivemos.

No livro "A Magia do Circo", do antropólogo Gilmar Rocha (ed. Lamparina, 2013), vários artistas repetem a mesma opinião: o que mata o circo é "a mesmice" –sempre os mesmos números, o monociclo do palhaço, os urros da mulher-gorila, os pratos do equilibrista, a pomba do mágico ou, na melhor das hipóteses, o chatíssimo globo da morte.

Discordo um bocado. A mesmice é necessária, porque a infância é o lugar da tradição. As cantigas de ninar não mudam, como não podem mudar o Lobo Mau, o escorregador e o pega-pega. Plante o que quiser depois, mas o canteiro e a terra são sempre iguais.

Quando pequeno, me surpreendia a miséria em volta da ostentação de adereços e roupas de cetim.

A mulher da bilheteria, o cachorro esquelético, o sabão do banheiro, os erros de ortografia nos cartazes, tudo traía uma origem popular, quase bruta, em contraste com o alarde em torno das atrações "nunca antes vistas", do sotaque argentino do mágico chinês, do internacionalismo real ou imaginário dos artistas.

É que, embora aspirando a um céu de flâmulas e trapézios e balões, a lona do circo tem de atar-se duramente às estacas do chão.

O circo não seria bonito –e triste– se não desmentisse, em cada detalhe, a opulência pretendida.

Assim como todo circo está em decadência, a moça da corda bamba está a ponto de cair, o malabarista se salva por pouco do desastre, e o palhaço, encarregado de algum feito corajoso, foge no último momento.

Acaba de sair um livro que é também registro de uma salvação. Publicado pela Prefeitura de São Paulo, sob a coordenação de Verônica Tamaoki, "Centro de Memória do Circo" conta, em cerca de 200 páginas, lindamente ilustradas, as atividades desse museu, escola e centro de pesquisas, que fica na Galeria Olido.

Bem na frente, portanto, do largo do Paissandu –onde ficava o lendário Circo Piolin e, como mostra um recorte de jornal reproduzido no livro, também o lugar onde se armou a lona dos Irmãos Carlo, com "três elephantes", em 1887.

Além de guardar tesouros antiquíssimos, como o diário do palhaço Polydoro (1854-1916), o centro cultural desenvolve pesquisas históricas, como a que trata da relação dos modernistas de 1922 com o circo. O livro de Verônica Tamaoki mostra excertos de uma polêmica entre Mário de Andrade e Alceu de Amoroso Lima a esse respeito.

Junto, uma receita de como fazer maçãs do amor, fotos de uma oficina para a elaboração dos guarda-chuvinhas que embalavam os doces vendidos na plateia, e ilustrações com os diversos tipos de bordado em lantejoulas.

Há assunto e conhecimento, enfim, para montar toda uma Universidade do Circo; seria –como dizem nos espetáculos– "uma coisa única no mundo". Desde 2009, há o projeto arquitetônico de um edifício de oito andares, a ser chamado Escola Piolin.

Mas, no Brasil, não dá para ter tantas ambições. Estamos sempre em decadência.


Endereço da página:

Links no texto: