Folha de S. Paulo


Ao fazer pinturas, Jim Carrey ilustra o benefício de sair do próprio papel

Luli/Editoria de Arte/Folhapress

Antes do advento de Donald Trump, eu tinha dois candidatos fortes para o título de Grande Idiota Norte-Americano: o igualmente presidente George W. Bush e o ator cômico Jim Carrey.

Verdade que Jim Carrey sempre teve talento. Foi extraordinário como apresentador numa cerimônia do Oscar e fugiu das macaquices de sempre num filme mais sério, "O Show de Truman", de 1998.

Ali, seu frenético e desesperado empenho em manter-se feliz encontrava boa utilização: ele encarnava um personagem confinado, desde o nascimento, num mundo televisivo artificialmente criado ao seu redor.

O problema é que nos filmes mais idiotas ele parecia perfeito para o papel, como se também produzido de nascença para entrar nas confusões de Debi e Loide.

Fazendo o Charada, num "Batman" de 1995, tudo levava a crer que Jim Carrey ultrapassava o que lhe fora pedido no roteiro, para entregar-se a si mesmo –isto é, a um maquinismo incontrolável de caretas e gestos esquizoides, capazes de tornar Jerry Lewis comparável a um brâmane ou um mestre zen.

Jim Carrey era uma força da natureza –e, sem dúvida, um produto da hiperatividade industrial da cultura americana no que tem de menos reflexivo, de mais humilhante para a autoestima da humanidade.

Chega, então, a boa notícia. Jim Carrey está se dedicando à pintura, e vale dar uma procurada no Google para checar um surpreendente filminho de seis minutos a seu respeito.

Não que as pinturas valham grande coisa –ele parece hesitar entre vários estilos, sem nunca chegar a bons resultados.

Às vezes, esbalda-se num colorido fluorescente e psicodélico, como se precisasse tomar aulas de contenção com Romero Britto. Ou então é o furor de Jean-Michel Basquiat que recebe uma versão infantilizada, muito sem inteligência.

Pouco importa. O emocionante é encontrar um Jim Carrey sério, introspectivo, humano e envelhecido, a debruçar-se sobre quadros enormes, procurando acertar. Certo que sua personalidade maníaca o fez, como ele próprio conta no filme, um obcecado, pintando sem descanso.

Mas a narrativa de como ele descobriu a "vocação" para a pintura permite que tenhamos acesso a outras dimensões de sua personalidade. Jim Carrey estava muito deprimido (!), num triste inverno em Nova York; tinha passado por uma decepção amorosa, e seu coração estava "em pedaços".

Um dos poucos conselhos aproveitáveis de autoajuda foi dado, a meu ver, pelo escritor Jorge Luis Borges, que passou a estudar algo novo para ele (a literatura anglo-saxã) quando recebeu a notícia de que estava irremediavelmente cego.

Para cada coisa que se encerra em nossa vida, ensina ele, é bom compensar com o começo de algo diferente.

Não sou dos que veem no sofrimento uma ação da Providência em favor de quem quer que seja; o sofrimento é sempre ruim, e nem sempre se consegue ressignificá-lo em algo produtivo.

De algum modo, parece que a tristeza funcionou como um "freio de arrumação" para a personalidade de Jim Carrey –claro que estou confundindo o ator real com seus personagens, mas no seu caso isso não parece um erro.

Levei meus filhos uma vez a uma peça infantil, e, como é natural, a plateia era dispersa, excitadíssima, quase ingovernável. As brincadeiras e atrações da história elevavam, sempre mais, a euforia do ambiente.

As crianças iriam explodir, não fosse um acontecimento surgir no momento certo: a bruxa, ou o monstro, não me lembro bem, produziram uma dose de medo capaz de aquietar a todos. O medo trouxe descanso, como uma boa sombra num dia de máximo calor. Os personagens de Jim Carrey talvez representem esse estado de permanente excitação, de felicidade compulsória, de delírio diversional a que somos tantas vezes forçados a aderir.

O otimista não pensa, dizia Paul Valéry. Discordo da opinião, mas entendo o que ele queria dizer. Pensar é dar um passo atrás, para encarar a vida um pouco mais de longe –como um pintor que se afasta um pouco do quadro, e para de pintar para avaliá-lo criticamente.

Aposentado de seus desastres na Casa Branca, também George W. Bush tem-se ocupado de pintura. Faz retratos de outros líderes políticos. Não são quadros tão ruins como os de Jim Carrey; há mais coerência no seu amadorismo, mais simplicidade, e uma atitude mais direta face às próprias insuficiências técnicas.

Bush e Carrey se livraram de seus papéis; muitas vezes, é o melhor mesmo que temos a fazer.


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