Folha de S. Paulo


Masp organiza grande exposição com obras do elétrico Toulouse-Lautrec

Editoria de Arte/Folhapress
Contra de 09.ago.2017.

O fogo começou às cinco para as nove da noite, quando a cantora que fazia o papel de Mignon, na ópera de Ambroise Thomas, pedia numa ária a proteção da Virgem Maria.

Era o dia 25 de maio de 1887, no teatro da Opéra-Comique. Morreram 110 pessoas, e mais de 200 ficam feridas. A tragédia tinha sido prevista 13 dias antes, pelo ministro da Cultura: o teatro iria queimar; "trata-se de um fato estatístico". Poucos anos antes, um incêndio na Ópera de Viena causara quase 500 mortes.

Era o declínio da iluminação a gás. A luz elétrica encontrava cada vez mais defensores por razões de segurança –tendo a vantagem adicional, e democrática, de permitir a instalação de pequenos motores para quem se dedicasse em casa a trabalhos artesanais, como a costura ou a marcenaria.

A eletricidade passou a colorir a paisagem de Paris: o rio Sena, dizia um escritor em 1900, "torna-se violeta, azul-pavão, cor de sangue... Uma orgia de volts e de ampères!".

Não é incomum que a pintura de Toulouse-Lautrec (1864-1901) inspire comparações com aquela nova forma de iluminação urbana.

Comentando um quadro do pintor ("A Toalete", 1896), Giulio Carlo Argan diz que ali "a luz não bate sobre superfícies coloridas dando-lhe brilho ou vibração: ela passa pelos filamentos de cor como a energia elétrica pelos fios do circuito".

Sobre "No Moulin Rouge" (1892), Sam Hunter e John Jacobus notam que o quadro "arde nas cores elétricas de laranja e verde".

No catálogo para a grande exposição de Lautrec no Masp, que vai até 1º de outubro, Luciano Migliaccio fala dos bailes de máscaras organizados por um amigo do pintor, o banqueiro Cernuschi, na sua mansão: foram "os primeiros em Paris a serem iluminados por luz elétrica".

Naqueles tempos, havia um grande debate técnico sobre os diferentes tipos de lâmpada a utilizar. Prevaleceram, como se sabe, as que possuem um pequeno filamento metálico incandescente. Mas havia também as de arco voltaico –as que, como nos filmes de Frankenstein, criam uma espécie de relâmpago contínuo a ligar dois bastõezinhos de energia.

Imagino que não seja apenas pela luz e pela cor mas também pelos zigue-zagues do traço que o "elétrico" se manifesta nos quadros de Lautrec.

Há muito tempo o Masp não fazia exposição de tamanha envergadura. Há quadros e desenhos de grande importância, trazidos de Chicago, de Paris ou de Madri (o lindo "A Ruiva numa Camisa Branca").

Sem contar a quantidade de cartazes e esboços que, retratando o mundo da prostituição e do teatro de variedades, fizeram de Toulouse-Lautrec não apenas um representante notável do impressionismo mas um revolucionário no campo da ilustração, da caricatura e da comunicação comercial.

Aí, a cor e a luz importam pouco. O que chama atenção é o contraste entre dois tipos de desenho, de linha. O primeiro tipo é mordaz, carregado, cruel –bocas retorcidas de carmim, sobrancelhas diabólicas, magrezas sobrenaturais, e, Deus do céu, quanta mulher de nariz pontudo!

Ao mesmo tempo, há muita gordura fluida, desenho que parece derreter conforme chega à borda inferior do quadro, camisolão das mulheres da vida em horas de folga. Simbolicamente, o jogo se dá entre "dissipação" e "perversidade", formas do decadentismo em fins do século 19.

De origem aristocrática, Toulouse-Lautrec gastou sua breve vida entre artistas, boêmios, prostitutas, homossexuais, bêbados e drogados; era um meio social que desprezava os limites entre as classes, as barreiras da convenção.

Algo de "mole", de "tortuoso", de "indistinto" aparece em seus desenhos, ao mesmo tempo que cada rosto guarda a ponta da provocação, do desplante, do desafio.

A influência do art nouveau está também presente nos cartazes –e basta lembrar os trabalhos de ferro que ainda se veem em alguns edifícios e estações de metrô em Paris para que uma contradição parecida venha à mente.

Nas grades e portões de Hector Guimard (1867-1942), formas curvas, imitando orquídeas e plantas parasitas, são implantadas no meio duro e técnico do metal.

O duro e o mole, a masculinidade industrial e o flexível feminino se compõem na ambiguidade da belle époque –e esses cavalheiros de cartola, essas mulheres com as rugas cobertas de creme e pó de arroz se jogam ao brilho inquieto das lâmpadas de Lautrec, numa breve e deslumbrante incandescência.


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