Folha de S. Paulo


Segurança de boate barra cliente negro usando proezas de argumentação

O Brasil está cheio de absurdos, mas alguns se destacam pela sofisticação. Veja-se o caso de Juliano Trevisan, advogado licenciado e diretor de marketing, que foi barrado numa boate em Curitiba quinta-feira passada.

Ele é negro, usa longuíssimos dreads no cabelo, tem sobrancelhas grossas, barba e bigode pretíssimos.

O funcionário da boate implicou com sua "aparência"; este é o absurdo habitual das coisas brasileiras. A sofisticação vem a seguir.

Juliano usava gravata e camisa de manga curta, ambas pretas. Ah, isso não! Aí já é demais! Com essa roupa, argumentaram, ele "ficaria parecido com um segurança", e isso haveria de confundir a distinta clientela. Curiosa volta para justificar um caso óbvio de racismo. A psicologia do episódio é das mais interessantes.

Quem barrou a entrada de Trevisan? Primeiro, um segurança, que o conduziu para conversar com um funcionário mais qualificado do estabelecimento.

Luli Penna/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 19.jul.2017

Provavelmente o segurança era branco, pois usava um rabo de cavalo. Na discussão com Juliano, destacou esse fato, para dizer que o "problema" não estava no cabelo comprido do cliente. "Também tenho cabelo comprido", assegurou.

Foi uma estranha, tortuosa confissão. Inicialmente, o segurança barra uma pessoa dizendo que "parece um segurança". Depois, assinala outro ponto em comum com sua vítima: "Nós dois temos cabelo comprido".

É como se, para impedir o negro de entrar na boate, ele tivesse de dar dupla garantia de que estava falando com um igual. Não discrimino o senhor por ser negro, mas por ser igual a mim.

A suposta igualdade era tão importante para ele, que teve de chamar um superior para colocar um último peso na balança.

Com essa desculpa, o segurança sem querer revelou muito sobre o racismo em geral. Desconfio que este se torne mais intenso quando é maior a proximidade entre perpetrador e vítima.

Se o negro já está no estrato mais baixo da escala social, o racista haverá de desprezá-lo, de culpar sua cor pela pobreza, pela baixa educação, pela "preguiça" ou pelo que bem entender. Poderá também fazer o caminho inverso, e dizer desprezá-lo não por sua cor, mas porque é pobre, sem educação ou o que mais inventar.

Porém, se o negro for diretor de marketing como eu, universitário como eu, dono de carro como eu, e frequentador da mesma boate que eu, seremos iguais –e só terei a cor dele para invocar em seu desfavor. Terei de declarar explicitamente o meu racismo.

Acontece que o segurança da boate estava numa situação socialmente inferior à de Juliano. Numa estranha reviravolta, primeiro o segurança tratou de "igualá-lo": pode ser que seja advogado ou cliente, mas parece um segurança como eu.

A partir daí, inconscientemente ou não, o racismo se exerceu em sua pureza. Como esse sujeito é meu igual em tudo, vou então barrá-lo pelo pormenor fatal: sua pele é negra.

Mas imediatamente eu reprimo esse motivo; não posso dizer que negro aqui não entra. Para esconder meu racismo, uso o argumento igualitário: somos iguais, por isso ele está barrado. É como se eu expulsasse meu racismo para fora de mim mesmo.

Nessa expulsão, eu me encontro. Afinal, na minha profissão de segurança, não me deixam dançar e tomar uísque na boate.

O segurança pode até dizer: estou fazendo com o negro aquilo que fazem comigo. Não me deixam dançar na pista. Por que ele poderia?

Expressou, assim, sua própria inferioridade social, vingando-se dela nas costas do negro. Alguém tem de ficar mais embaixo do que eu.

Quanta ousadia, ele querer ficar parecido comigo e com meu rabo de cavalo! Pensa que se parece comigo? Mas se nem eu posso ser cliente dessa boate, então ele que aprenda –não vai entrar lá tampouco.

O segurança conseguiu, portanto, a proeza de enaltecer a igualdade entre negro e branco, mas por via negativa; quanto mais iguais, mais discriminados.

Numa última ironia, a boate era em Curitiba, cidade em que o juiz Sergio Moro aparece sempre de camisa preta e gravata preta.

Um negro, ainda por cima advogado, usa roupas de Sergio Moro: eis que o medo diante da lei se torna difícil de suportar. A boate, se for chique mesmo, conheceria de fato um "desconforto". Juízes de primeira instância, como se dizia dos negros antigamente, deveriam saber melhor qual é o seu lugar.


Endereço da página: