Folha de S. Paulo


Com Spotify e YouTube, aprendi a me entupir de música sem ouvir nada

Comprei um fone de ouvido com bluetooth, o que me permite sair rapidamente do computador -para fazer um café ou ir ao banheiro- sem me desconectar dos canais de música que ouço continuamente.

Mas não ajuda muito: alguns passos à direita ou à esquerda e o sinal já se interrompe. E o aparelho descarrega depois de um tempo. Resultado, mantenho dois fones sempre à mão: o tradicional, com o cordão sempre grudado ao umbigo do laptop, e o outro, carregando na entrada USB.

Nenhum dos dois é confortável o bastante. Minhas orelhas, nada pequenas, recebem constante pressão dessa espécie de botina ortopédica dupla, dessa pinça de caranguejo almofadada, desse arcobotante torcionário e negro, dessa algema occipital que me prende ao fluxo da música.

Editoria de Arte/Folhapress

Streaming, o nome é esse: uma corrente interminável a sair das rádios estrangeiras, do YouTube ou do Spotify, sem que eu precise me ocupar nem mesmo da escolha do que quero ouvir.

Eles sabem. O Spotify, a exemplo dos sites de compras que oferecem novas sugestões baseadas em meus hábitos de consumo, apresenta-me cinco canais com a seleção diária do que me possa interessar, sem contar com os lançamentos da semana no meu gênero preferido.

Não há como reclamar, claro. É diferente das antigas estações de rádio, que sem dúvida também limitam qualquer autonomia de escolha -mas havia o problema de zanzar pelo dial, e no meu caso, que estacionava na música clássica da Rádio Cultura, a chance de ficar ouvindo obras arquiconhecidas de Tchaikóvski ou de Verdi tendia a me afastar da programação.

Estamos, aparentemente, no melhor dos mundos: esses sites de música on-line tocam o que prefiro ouvir, sem que eu precise exercer a todo momento um cansativo direito de eleição.

No mundo auditivo, trata-se de uma espécie de parlamentarismo particular: os artistas e compositores se trocam com rapidez, dentro de um intervalo estreito de preferências, sem que eu tenha depositado em definitivo minha confiança numa só emissora de rádio.

Imagine, entretanto, se o mesmo acontecesse com livros: em vez de ficar dias e dias com um só, ligaríamos uma torneira sem pausa de textos inter-relacionados e interessantíssimos, transcorrendo na tela sem que sequer acionássemos o mouse. Seria a máquina de alimentação de Charles Chaplin em "Tempos Modernos", plugada no cérebro.

Ainda bem que a leitura exige, bem ou mal, um esforço de vontade que o sentido da audição, mais passivo, naturalmente dispensa.

E ponha passividade nisso. O resultado dessa música sem fim é que fico mais tempo do que devia grudado ao computador. Para não ficar sem fazer nada, entro em sites de passatempo, como o Pinterest ou o Facebook.
Termino sem prestar nenhuma atenção ao que estava ouvindo: é o preço da passividade total. Como nunca, os aficionados de música clássica têm acesso a latifúndios de novidades e descobertas.

Todo dia aparece algum compositor ótimo que o passar do tempo tinha feito esquecer: o francês George Onslow (1784-1853), o sueco Wilhelm Stenhammar (1871-1927), o austro-inglês Hans Gál (1890-1987) são provavelmente os mais conhecidos desses grandes desconhecidos.

Nomes mais citados nos livros de história, como Ernst Krenek (1900-1991) ou George Antheil (1900-1959), agora têm acessível o conjunto de sua obra.

Como se não bastassem essas pilhas de partituras quase inéditas a conhecer, as gravadoras de música clássica procuram renovar experiências musicais já estabelecidas.

Assim, apareceu recentemente um disco do "Cravo Bem Temperado" transcrito para acordeão. O pianista Andreas Staier colhe aplausos, de que suspeito, ao interpretar coisas como a "Marcha Turca" e as "Variações Diabelli" com acréscimo de percussão e pedais que imitam pratinhos e tamborins.

Ouça, desgraçado! Quem sabe agora você presta atenção! Eu tento, e me perco. O fone de ouvido está doendo; o computador me distrai; não penso; sou eu a máquina, sou eu o aparelho receptor, sou eu a antena.
Vantagem: voltamos a ouvir música, realmente, nas salas de concerto. Não é à toa que, com tantos sucessos pop pelo ar, os shows dos grandes astros enchem de gente.

Há sites, por outro lado, que oferecem apenas som. Barulhos de floresta, de cafeteria, de chuveiro, até de ventilador podem ser mixados no www.defonic.com. Melhor que isso, só ficando surdo de uma vez.


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