Folha de S. Paulo


Como poucos pensam sobre política e economia, o debate se simplifica

Tomado por absoluto pavor de avião, um amigo inventou de viajar à Europa de navio –coisa que, com boa vontade, ainda era possível lá pela década de 1980.

Durante a viagem de volta, ficou insone durante a madrugada. Ligou o rádio, e percebeu que se aproximava da costa brasileira. É que, entre chuviscos e interferências, distinguiu a fala de um locutor.

O assunto, claro, era futebol.

Não temos setoristas de rádio cobrindo o que se passa nos mais importantes partidos políticos. Mas existe um repórter, certamente, encarregado de acompanhar os bastidores e os treinos em cada time de nossa pátria.

Como todo mundo, assusto-me com o grau de radicalização do debate político brasileiro nos últimos anos. A quantidade de burrice e de intolerância é gigantesca.

Luli Penna/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 17.mai.2017

Mas talvez a preocupação seja excessiva. É que estávamos desacostumados de tratar de assuntos políticos. A internet dá visibilidade a xingamentos e patrulhas, mas é possível que para os padrões europeus sejamos até muito bem-comportados.

Pancadaria entre grupos de esquerda e de direita ainda não existe por aqui. Pode-se acrescentar que, no Brasil, a PM cuida dessa parte, tornando dispensável a intervenção de milícias de direita.

Ao longo do século 20, entretanto, a violência partidária organizada costumava não depender muito da sanção oficial. Quem não ouviu falar do "Comando de Caça aos Comunistas" no Brasil dos anos 1960?

Estamos longe disso, não sei por quanto tempo.

O fato é que a disputa ideológica se tornou mais clara porque, depois de longo período de desmoralização, a direita recuperou seu amor-próprio. Tomou a iniciativa da discussão, fundamentando-se tanto no fracasso histórico da União Soviética quanto na derrocada ética do PT.

Sem o hábito de se defrontar com adversários competentes, muita gente de esquerda reage com emocionalismo, ou então se recolhe no desprezo e na apatia. Seguindo o exemplo dos "neocons" americanos, a direita é mais CDF.

Na semana passada, falei de um canal no YouTube, o Mamaefalei, que se dedica a entrevistar participantes de manifestações de esquerda, de modo a revelar o quanto ignoram das próprias causas. Claro que, num ato público de direita, seria possível ouvir exemplos equivalentes de desconhecimento e estupidez.

Mas não fiquei sabendo de nenhum youtuber de esquerda que tenha divulgado entrevistas desse tipo. Estava na hora de aparecer.

Seria utópico esperar de um manifestante, em todo caso, aulas aprofundadas sobre a importância de Marx ou, inversamente, sobre a utilidade do mercado financeiro. Embora notável no ambiente brasileiro, a desinformação sobre assuntos de política e economia tende a ser comum em qualquer lugar do mundo.

O próprio sistema de mercado produz uma contradição com respeito a seus defensores mais articulados. Afinal, alimenta o interesse das pessoas pelo consumo, não pela discussão ideológica. Celebridades, forma física, gastronomia e bugigangas eletrônicas nos ocupam de modo mais prazeroso, sem dispêndio de neurônios.

Eis um produto, aliás –os neurônios– cujo deficit não se pode menosprezar. Nesse sentido, compreendo, mas não desculpo, a ignorância dos manifestantes de esquerda ou de direita.

O cidadão que se sentiu beneficiado pelo governo Lula pode saber de pouca coisa; sua relação com a política não envolve conhecimento técnico, mas é sobretudo um ato de confiança.

Não é assim com todo mundo? Num misto de raciocínio, de memória, de identificação grupal, de preconceito e de fatos reais, escolhe-se um lado do debate, deposita-se um capital de confiança, e ponto final; nem todo mundo quer passar o tempo todo pensando no assunto.

Para a esquerda, surge um complicador. Tradicionalmente, acostumamo-nos a pensar em termos de luta de classes. Se o empresariado está a favor de tal reforma, isso é sinal de que o contrário está mais certo.

O raciocínio é automático, embora seu pressuposto não seja mais plausível –o de que o ideal seria eliminar a classe burguesa, vista como parasitária.

Só as franjas mais radicais da esquerda, acho eu, acreditam ainda nisso. Ocorre que, mesmo praticamente extinto, o dogma funciona como um polo magnético invisível, entravando o pensamento crítico.


Endereço da página: