Folha de S. Paulo


Com a morte de Derek Walcott, um dos grandes poetas atuais desaparece

Luli Penna/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 3.mai.2017
Ilustração Marcelo Coelho de 3.mai.2017

O caminhãozinho vermelho está bem no centro do quadro, com os faróis acesos, percorrendo uma estrada que não se vê.

Na metade inferior, tudo se cobre de um verde sujo, a indicar um pasto interminável. No alto, montanhas brancas e um céu que ainda não é noturno misturam tons de aço, de roxo, de lã de ovelha.

E é só isso. O quadro do canadense Peter Doig poderia perfeitamente incluir-se no gênero "naif", e não ficaria deslocado de uma exposição como a do brasileiro Agostinho Batista de Freitas, realizada há pouco tempo no Masp. Mas o poeta Derek Walcott acrescenta 12 versos à pinturinha. Imagina, primeiro, que com a aproximação da noite o motorista acendeu um cigarro, enquanto a viagem prossegue.

As províncias do Canadá deslizam pela estrada, com suas cidadezinhas apinhadas; não acabam nunca os silos e as tulhas, e "pontes acontecem sobre córregos sem nome". Logo será tão tarde que nada mais vai existir, exceto a luz do caminhão vermelho.

E quem saberá, termina o poeta, que carga esse caminhão transporta na caçamba, onde um passageiro, clandestino e encolhido, "também dorme a noite inteira"?

O texto faz parte de "Morning, Paramin", livro que Walcott, prêmio Nobel de literatura de 1992, publicou pouco antes de morrer, em março deste ano. São 51 poemas curtos, cada qual comentando um quadro, reproduzido na página oposta, de Peter Doig.

Não há como deixar de pensar que o "passageiro clandestino", ou o caronista, no compartimento de carga do caminhão vermelho funciona como uma metáfora da morte. Mas pode ser também o próprio poeta, que "pega carona" nas pinturas de seu amigo canadense.

Seja como for, a noite se aproxima. O tema se repete muitas vezes no livro, nem sempre em tons melancólicos.

Em outro poema, Walcott pensa num concerto. Estendendo-se sobre a água, mas suavemente, a música noturna requer o acompanhamento de estrelas tristes.

Nota a nota, cintilante, a harmonia se abre numa constelação; os metais espalham um fulgor constante, e se ouve no quebra-mar, primeiro, um solitário bater de palmas, e em seguida "a unânime ovação".

Traduzo do meu jeito os versos de Walcott, e sofro da desvantagem adicional de não poder mostrar as pinturas de Peter Doig, às vezes puras, luminosas e realistas, outras vezes oníricas e flertando com o primitivo.

Numa delas, muito comportada e clara, vemos um homem de costas, com uma espécie de guarda-solzinho na cabeça, caminhando ao longo de um muro escuro e descascado. O sol é tão forte que deixa o céu quase branco de luz.

É o muro de um cemitério, explica Derek Walcott; o homem que caminha por ali é sem dúvida um viúvo, a sombrinha florida sobre sua cabeça pertencia à mulher morta. O quadro, de tão simples, foi "pintado em dialeto", quase como um cartum —mas na perspectiva do muro "há infinitude e paciência".

O homem "passa pela mesma rua todo dia", conclui o poeta; repete-se "como uma pintura dele mesmo".

Assim como muitos quadros de Peter Doig, os poemas de Walcott tratam de coisas reconhecíveis; não são difíceis de entender. Ao mesmo tempo, cada realidade representada, pelo simples fato de se ter duplicado, ganha um poder fantasmagórico. A realidade não é simplesmente copiada: é como se ressuscitasse.

A ressurreição dos mortos talvez seja um dos temas-chave do livro mais importante de Derek Walcott, "Omeros", admiravelmente traduzido para o português por Paulo Vizioli (Companhia das Letras, 2011).

Os mortos são os antepassados africanos deste poeta nascido na ilha de Santa Lúcia, nas Antilhas —mas também os heróis da "Ilíada", que ganham nova existência como pescadores ou motoristas de vans naquele destino turístico de luxo.

Um dos grandes méritos de Walcott está em recorrer à história de Heitor, de Aquiles e de Helena de Troia sem ceder às facilidades —em que nós, brasileiros, somos mestres— da paródia e da avacalhação.

Colonialismo, floresta, pobreza, oceano, turismo, bruxaria e tradição clássica se organizam numa obra longa e complexa, com personagens e episódios claramente delineados, numa exaltação de imagens e de pura beleza verbal com poucos paralelos em todo o século 20. A morte de Derek Walcott significou o desaparecimento de um dos maiores, e mais universais, poetas do nosso tempo.


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