Folha de S. Paulo


Filme sobre McDonald's vale por uma aula sobre a racionalidade capitalista

Luli Penna/Folhapress
Ilustração de Marcelo Coelho de 29.mar.2017

Burocracia, na linguagem cotidiana, é sinônimo de papelada e perda de tempo. Mas o sociólogo Max Weber (1864-1920) usava a palavra de modo mais amplo e mais neutro, talvez até positivo.

Sem burocracia, nesse sentido geral, não teríamos nem sequer como receber o holerite no fim do mês. Não haveria funcionários para calcular horas-extras, nem gente capaz de verificar se há fundos num cheque bancário. Não haveria juízes ou advogados trabalhistas.

Tudo, em última análise —a começar do governo e da Justiça— estaria sujeito a humores e preferências pessoais, sem qualquer regra codificada, e sem especialistas em fiscalizá-la e interpretá-la.

Longe de criar, portanto, uma barafunda de papéis sem utilidade, a burocracia —nessa acepção— serve para racionalizar o mundo, para ordenar a administração dos homens e das coisas.

Ray Kroc era um vendedor de geringonças fracassado quando descobriu, em 1954, uma lanchonete em que tudo funcionava bem. Nada de ficar esperando 30 minutos para receber um simples hambúrguer, nada de discutir com a garçonete porque ela novamente tinha errado o seu pedido. O sanduíche chegava em 30 segundos.

A lanchonete, claro, era o primeiro McDonald's, e o filme "Fome de Poder" mostra com que custos, econômicos e humanos, aquele pequeno estabelecimento na Califórnia se tornou o que é hoje.

O diretor John Lee Hancock tem um mérito raro no cinema comum hollywoodiano, que é o de evitar a patriotada; evita especialmente a sentimentalização do sucesso individual.

Vemos simplesmente, com um distanciamento sociológico, quase "weberiano", como as coisas funcionam. A começar da própria confecção dos hambúrgueres.

Os irmãos Mac e Dick McDonald tiveram a ideia de racionalizar, de "burocratizar" ao máximo as atividades de uma lanchonete.

Aquilo funciona como uma linha de produção, como uma fábrica, com cada empregado se especializando numa tarefa específica: ou fritar a carne, ou colocar duas rodelinhas (sempre duas) de pepino sobre o queijo derretido.

Racionalidade completa, portanto, com o óleo das batatas em temperatura constante, com a duração de cada etapa rigidamente cronometrada, com o gerente zelando pela obediência às regras.

Só que essa racionalidade tinha seus limites. Os inventores do sistema não se interessavam em ampliar o negócio. Seu sucesso, puramente local, advinha do desejo de fazer melhor o que outras lanchonetes faziam -mas comportava também outro tipo de valor.

Eles queriam que a lanchonete fosse limpa, ordeira, familiar. Baniram as máquinas de vender cerveja ou cigarros, os aparelhos de música automática e tudo que pudesse reunir boêmios ou delinquentes juvenis.

Numa passagem sintomática do filme, eles rejeitam uma proposta para diminuir os custos da lanchonete, porque seria excesso de "comercialismo" —algo incompatível, dizem, com os "valores do McDonald's".

Aí entra o protagonista do filme, "The Founder" ("O Fundador"), como diz o título original. Ray Kroc (Michael Keaton) transforma a lanchonete num sistema de franchising, cobrindo o mundo inteiro com o logotipo da empresa.

Em muitos aspectos, Kroc é bem mais "racional" do que Mac e Dick McDonald. Por que não usar uma mistura em pó para fazer milk-shake, se isso economiza milhões nos custos de refrigeração?

O cálculo do lucro e os modos de disciplinar a atividade dos franqueados ganham em sofisticação —e o filme mostra algumas tiradas autenticamente geniais desse ponto de vista.

Há outro fator em jogo, todavia. Não se trata apenas de lucro —mas quase de religião também. Os "arcos dourados" da lanchonete, na cabeça de Ray Kroc, teriam de elevar-se em cada cidade, ao lado da bandeira americana nos edifícios públicos e da cruz na torre das igrejas.

O modelo racional-tradicionalista dos dois irmãos dá espaço a um tipo de vocação messiânica por parte de Ray Kroc -do mesmo modo que as modernas igrejas evangélicas adotam, por sua vez, o sistema de "franchising" para sua expansão.

Racionalidade e espírito missionário —sem qualquer crença sobrenatural hoje em dia— combinam-se mais uma vez, como nas teorias do velho Max Weber sobre a origem do capitalismo.

Lucrar mais, dessa perspectiva, não é egoísmo: é questão de sobrevivência, neste ou no outro mundo. Os arcos dourados da lanchonete surgem como um portal sagrado, ainda que não levem a nada que preste.


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