Folha de S. Paulo


Pelas 'verdades econômicas', a política perde toda sua credibilidade

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli de 22 de março de 2017
Luli de 22 de março de 2017

De esquerda ou de direita, no Brasil, na Europa ou em qualquer lugar, não importa: todo governo parece ter predileção por medidas impopulares e políticas "de austeridade".

Claro que impostos para os mais ricos —e um pouco de austeridade para eles não cairia mal— é coisa que raramente entra em discussão.

Ainda assim, o tema dos impostos é pelo menos enunciado formalmente. "Poderíamos aumentar os impostos, mas isso ninguém deseja", dizem políticos e economistas. Assunto encerrado.

Existe todavia outro tema nesse campo de discussões —e é um tabu ainda maior, na verdade, que o dos impostos. Mas vamos por partes.

Não tenho informação bastante para opinar sobre a reforma da Previdência. Ouço especialistas favoráveis à proposta do governo, mas sem aprofundar minha atenção. Todos concordam, basicamente, que sem diminuir os benefícios o Estado brasileiro irá à falência.

E isso, acrescentam eles, não é uma brincadeira, uma mentirinha: simplesmente, um belo dia, a polícia, o exército, os delegados e juízes ficam sem salário. Não haverá um tostão para pagar o Bolsa Família. A conta de luz das escolas e hospitais deixará de ser paga.

A dívida pública irá às alturas; para atrair um mínimo de dinheiro dos investidores, os juros subirão mais ainda. A economia se paralisa, e o país, numa palavra, acaba.

Não sou bom de contas. Digamos que essa possibilidade seja real. Um amigo, sabendo de meu desinteresse, resolveu cortar caminho na argumentação.

"Claro que reformar a Previdência é necessário", disse. "Ou você acha que Michel Temer inventou isso só porque gosta de ser malvado?"

Espreme daqui, espreme dali, outro especialista se lembrou de outra saída clássica para o problema das contas do governo.

É a inflação, claro.

Se você deixar os preços subirem, e mantiver o salário mínimo sem reajuste por um tempo —e junto com isso as aposentadorias—, a diminuição dos gastos com a Previdência ocorreria, sem que você tenha de votar uma mudança radical nas regras em vigor. Repito, não tenho competência para saber se as contas fecham com isso, e quanto de inflação teria de haver.

O interessante, do meu ponto de vista, é que nem se fale da possibilidade de inflação. Menciona-se a alternativa do aumento de impostos —-apenas para rejeitá-la em seguida. Da inflação, nem isso; nem mais como ameaça a palavra serve.

É quase como se estivéssemos tratando do impensável, do inominado, do tabu. O tema está excluído até da visão mais catastrofista. Desapareceu do horizonte.

Vive-se, assim, um quadro paradoxal. As mentiras do mundo político nunca foram tão constantes, tão compulsivas. Um candidato se elege dizendo que não irá mexer nos direitos trabalhistas e empenha-se exclusivamente nisso desde a posse. O socialista, o "amigo do povo", impõe as mesmas medidas de austeridade que criticava no adversário.

Este é o procedimento básico de todas as democracias, sem que precisemos colocar em pauta os casos extremos de "pós-verdade" na era Trump, ou os negaceios grotescos de Eduardo Cunha e outros envolvidos na Lava Jato.

Falo da mentira "normal", por assim dizer, que antecede qualquer legislação impopular. O paradoxo está no fato de que esse discurso convive com uma convicção quase religiosa, e honestíssima, na "verdade da moeda".

O valor de R$ 100 não pode mudar com a inflação. Idealmente, faz-se tudo para evitar que, com a depreciação da moeda, os R$ 100 escritos na nota passem a valer, "na verdade", R$ 90.

Em benefício da estabilidade dos preços, as mais impiedosas reformas econômicas são feitas, as mentiras eleitorais mais patentes se revelam, a credibilidade dos políticos se desvaloriza ao máximo.

A inflação era um logro, uma mentira, um roubo do qual felizmente nos livramos. A contrapartida parece ser um imenso elogio das "duras verdades" econômicas —precisamos cortar gastos, salários, investimentos, aposentadorias, tudo—, ao lado de uma mendacidade permanente nas candidaturas, nas denominações partidárias, nas entrevistas, nos programas dos políticos.

Dado esse descrédito de base, não é de espantar que Donald Trump e outros possam inventar as bizarrices que lhes passem pela cabeça. Se algum adversário quiser desmenti-los, não terá dificuldade em apontar quanto de lorotas seriíssimas, por seu turno, ele já vendeu como verdade.


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