Folha de S. Paulo


Nada, nunca, teve preço fixo; nós é que não sabíamos disso

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli Penna de 15 de Março de 2017
Luli Penna de 15 de Março de 2017

Um amigo me comunicou, faz algum tempo, sua estranheza com as oscilações na Bolsa de Valores. "Não é possível que uma coisa mude de preço o tempo todo sem parar", reclamava, desconfiando de que havia algo de certamente imaginário no processo.

Sou do tempo em que muitas pessoas fugiam dos investimentos em ações, julgando que só imóveis ofereciam solidez. Claro, uma casa ou um apartamento acabavam valorizando com o tempo —até porque a população crescia e a cidade ia se desenvolvendo.

Na verdade, se dispuséssemos de mais informações, o preço de qualquer edifício conheceria oscilações diárias e preocupantes. Qualquer rumor sobre modificações na lei do zoneamento, a iminente inauguração de uma casa noturna em frente, a ocorrência de um assalto ou de frequentes quedas de energia (isso acontece onde moro) seriam fatos a levar em conta.

Mais ainda: uma diminuição qualquer no ritmo da construção civil haveria de tornar minha casa mais valorizada. Sim, porque com isso a oferta de imóveis no mercado tenderia a ficar menor. A não ser que fosse o contrário —a construção estava caindo porque já havia menos gente procurando casas.

Como identificar o instante em que um fenômeno começa e outro termina? Entre o começo do crescimento da procura e o tempo que restava da estagnação da oferta, como encontrar a hora certa para colocar o apartamento à venda?

Variações, ainda que mínimas com relação ao preço total do imóvel, estão ocorrendo assim invisivelmente, a cada pequeno vazamento de torneira ou novo condomínio que se inaugura num bairro distante.

Claro que toda a racionalidade econômica do mundo só serviria, num caso desses, para deixar louco o proprietário do apartamento. Ele não faria outra coisa a não ser computar todos os fatores possíveis de valorização ou depreciação da sua propriedade. Ficaria tão paranoico que logo iria ter de mudar de casa, instalando-se no asilo mais próximo.

Podemos supor, entretanto, que alguém, ou algo, estivesse fazendo esses cálculos para ele.

Pelo que sei, o sistema do Uber funciona desse modo com o transporte urbano. O preço de uma corrida não é fixo, oscilando automaticamente de acordo com a oferta e a procura do exato instante em que chamamos a condução.

Nada como um voo internacional para nos tornar conscientes de nossos próprios interesses. Sentado num dos primeiros lugares da classe econômica, pude ver que a classe executiva estava praticamente vazia.

"Oras bolas", pensei, "por que não me deram um upgrade?". Até um sorteio seria ótima pedida. Aqueles lugares estavam ociosos; por definição, toda ociosidade é antieconômica. Qualquer avião que não esteja perfeitamente lotado já é um começo de prejuízo para a companhia.

Foi como se a empresa tivesse lido meus pensamentos. Dali a uns dias recebi uma oferta para o voo de volta. Organizou-se uma espécie de leilão pela internet, para quem quisesse passar à classe executiva.

A companhia estava fazendo qualquer negócio. Ponha US$ 100 aqui, e se ninguém mais aparecer, a poltrona é sua. Para eles, qualquer coisa era melhor que nada -e ainda liberavam mais um lugar na classe econômica. Ganhavam o preço da passagem turística, digamos US$ 2.000, e mais os US$ 100 que eu estivesse pagando. Pensando de modo um pouco torto, é como se o novo passageiro tivesse pago para que eu viajasse na classe executiva...

Assim como no caso do Uber, estamos diante de uma proeza da informatização total. Os mecanismos da oferta e da procura se tornaram mais transparentes e eficazes à medida que a informação corre mais depressa, fazendo com que ociosidades e bens desaproveitados entrem instantaneamente em circulação.

Imagino o que pode vir pela frente. Que tal um cardápio eletrônico nos restaurantes? Na cozinha, sobra marisco ou camarão naquela noite. A comida não dura mais que um dia. No seu iPad ou celular, um sinal se acende, anunciando desconto de 80% naquele prato.

Ninguém sentiria saudade de jogar em bingos entrando num restaurante assim. Serviços de barbeiro ou de funilaria, pedágios, latas de palmito, nada mais teria preço fixo -como, de fato, nada, nunca, teve preço fixo; nós é que não sabíamos disso. E que cada um se segure bem no próprio celular.

coelhofsp@uol.com.br


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