Folha de S. Paulo


Romance japonês adentra mistério matemático dos números primos

Luli Penna/Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli de 8.mar 2017.

Meu talento para a matemática é baixíssimo, mas acho que tenho até alguma boa vontade quando me explicam direito. Não há ser humano, provavelmente, que não se encante com os truques e artimanhas de Malba Tahan em "O Homem que Calculava".

O sistema da leitura obrigatória nas escolas adquire muitas vezes caráter quase punitivo. Tive de ler "O Ermitão da Glória", de José de Alencar, e meus filhos, "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, aos 13 anos.

A coisa se resume às aulas de literatura e português, mas seria perfeitamente possível receitar livros em outras matérias, desde que não fossem chatos. E a quantidade de livros que não são chatos, em todos os assuntos, é enorme.

Na vida adulta, milhares de pessoas leem "1808", de Laurentino Gomes, ou os livros de Marcelo Gleiser sobre física; matavam-se de tédio, sem dúvida, quando na escola tinham de aprender sobre esses assuntos.

Sobre matemática, há muita coisa para ler também. Saiu agora pela Estação Liberdade um best-seller da japonesa Yoko Ogawa, "A Fórmula Preferida do Professor".

Para meu gosto, o livro poderia ter mais matemática, e mais qualidade literária, do que acaba apresentando. Mas a ideia geral desse romance vale uma leitura.

A narradora é uma empregada doméstica, a quem cabe cuidar de um gênio matemático já bastante velho –e que, devido a um acidente cerebral, ficou com a memória gravemente comprometida. Esquece tudo de 80 em 80 minutos.

A empregada está submetida às normas da agência que a contratou e sofre a vigilância silenciosa da cunhada do professor. Sua chance de perder o emprego é enorme, ainda mais porque seu filho de dez anos aparece todo dia na edícula arruinada onde mora o matemático.

Há muito de japonês nessa situação inicial: a criança que se entende com o velho sábio, as regras estritas de comportamento e o agudo contraste entre o espírito da tradição e a realidade de um mundo em que tudo é descartável –empregadas, memórias, amizades.

Esse contraste se reflete, pensando bem, na própria matemática. Obedecemos a leis imutáveis, eternas. Só que, uma vez resolvido um problema, tudo termina e nasce de novo invariavelmente, como na mente acidentada do professor.

A especialidade dele, fico sabendo, é considerada a mais artística, a mais exclusiva de todas as áreas da matemática. Para minha surpresa, é que consiste no estudo dos números naturais –aqueles que toda criança conhece, um, dois, três, quatro.

O que haveria de tão misterioso nessas figurinhas? O livro destaca os números primos. São aqueles (disso eu lembrava) que só têm dois divisores, o número 1 e eles próprios.

Podemos encontrá-los com facilidade –no começo. Pegue o número 7, por exemplo: não dá conta exata se tentarmos dividi-lo por 2, por 3, por 4, por 5 ou por 6. Só funciona dividindo por 1 ou por 7 mesmo.

Muito bem, explica o professor. Será infinita a quantidade de números primos? Podemos provar isso matematicamente?

Como eu disse, no começo é fácil achar muitos números primos.

Mas, continua o personagem, "quando a conta passa de cem e chegamos à casa dos cem mil, um milhão, dez milhões e assim por diante, entramos então em um deserto, onde os números primos desaparecem por completo".

De repente, do meio do nada, aparece um número primo. Como apareceu? Como encontrá-lo? Como prever sua aparição? Mistério.

A beleza, quase mística, da coisa é que de repente o que parece uma simples invenção humana –os números– foge de nosso controle. Passa a comportar-se como um fato da natureza, como uma realidade independente. Procuramos números primos na sequência infinita dos números como procuramos planetas habitáveis no universo.

Para a autora do livro, é como se todos os números fossem criação de Deus; nosso trabalho é descoberta, como na física ou na biologia.

Mas não é impossível que criações humanas ganhem vida própria, contendo relações e acontecimentos sobre os quais não temos controle e cujo comportamento não podemos prefigurar.

Grandes obras de arte, por mais que planejadas por um único cérebro, podem conter segredos e inter-relações que seu autor nunca imaginou. "A Fórmula Preferida do Professor" certamente não entra nessa categoria –que há de ser tão restrita quanto a dos números primos.


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