Folha de S. Paulo


Nem é preciso música para celebrar a reconquista das ruas da cidade

Meus filhos acham graça nas reações que tenho diante do Carnaval de rua em São Paulo. Tenho repetido, nos últimos anos, exclamações de surpresa diante do fenômeno. "Simplesmente isso não existia!" "Nunca vi coisa igual!"

Talvez eles não tenham memória suficiente para tanto, mas posso garantir que há três ou quatro anos seria impensável o que vi neste domingo, na rua da Consolação –e nem era Carnaval ainda.

De tarde, sem trio elétrico, tudo mais parecia a extensão de um passeio dominical pela avenida Paulista –só que havia falsos travestis imitando a Mulher Melancia, moças com asas de anjo e alguns velhos piratas já bastante sambados na vida.

Eu estava caminhando, sem dúvida, pela borda exterior do agito na rua Augusta –onde, segundo se noticia, ocorria o desfile do maior bloco carnavalesco da cidade. Seja como for, havia milhares de pessoas, e muita coisa faltando.

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli de 22 Fev de 2017

Música, por exemplo: praticamente ninguém se lembrou de levar, ou talvez ninguém mais possua, algum aparelho portátil de som. Máscaras: qual o sentido de se disfarçar, afinal, quando o anonimato é velharia na civilização dos selfies?

Só não entendo o fim do confete e da serpentina, para nada dizer do pó de arroz. Nos tempos antigos, imagino que esses artigos de ocasião funcionavam como o dispositivo do "cutucar", do "poke", nos primórdios do Facebook. Permitiam uma abordagem simpática entre desconhecidos.

Valeria vender algum produto desses, reconfigurado para os tempos atuais: purpurina, quem sabe, ou sprays de água termal de Vichy.

Ninguém teria medo, imagino, de alguma agressão homofóbica. A sensação era de uma tranquilidade sem fim, para a qual contribuiu, creio, uma quase ausência de policiamento. Mães com crianças pequenas, marmanjos de academia, estudantes do Mackenzie e pessoas nos 50 tons do arco-íris coexistiam sem problema, e a pequena porcentagem de bêbados não demonstrava agressividade.

De onde vem esse ressurgimento do Carnaval em São Paulo? Em primeiro lugar, trata-se de um serviço prestado à cidade pela comunidade gay. Não apenas se mobilizou muito nestes dias, mas foi a tradicional passeata do orgulho LGBT na avenida Paulista um dos principais responsáveis para a conquista da cidade por seus próprios cidadãos.

Vieram depois a liberação do Minhocão e da Paulista para os pedestres nos fins de semana e as manifestações políticas.

De junho de 2013 para cá, firmou-se a consciência entre os paulistanos de que o automóvel não é sagrado, e que basta uma boa multidão para que o trânsito, ora, o trânsito, seja desviado –e o motorista que se vire.

É uma colonização, uma conquista, uma ocupação que se faz aos poucos. Parece-me evidente que a partir de certo horário já não há lugar para carros em algumas ruas de São Paulo, em qualquer dia de semana.

Certas ruas da Vila Madalena já têm tantas mesas na calçada e tanta gente esperando em volta que falta apenas às autoridades da prefeitura o bom senso de decretar ali uma zona de pedestres a partir das sete da noite. O mesmo, digo eu na condição de motorista, ocorre à frente de algumas faculdades, como o Mackenzie, a Faap e a Uninove da Água Branca.

Chega de carros –o que era utopia se torna pura constatação realista em alguns pontos da cidade. Há revoluções que se fazem assim, imperceptivelmente.

A internet facilita esse tipo de congraçamento: a "volta" do Carnaval de rua, nesse sentido, não aponta para o passado.

Também impensáveis sem a internet foram as manifestações de direita ou de esquerda.

Podem ter resultado em vitória ou malogro, conforme o caso, mas estavam de acordo numa plataforma política "inconsciente", por assim dizer, que se reflete no Carnaval.

Não só as ruas se retomavam para os pedestres, mas de alguma forma se vencia a sensação de insegurança, de individualismo, de isolamento que caracteriza São Paulo.

De algum modo, o prazer de estar junto é tão ou mais importante do que a proposta ou reivindicação em pauta na manifestação. Muita gente foi às manifestações "porque todos estavam indo" e porque a ideia defendida não lhe era adversa.

Este Carnaval paulistano é uma manifestação sem bandeira. Nem a música nem a dança parecem essenciais; alguns usam fantasias, mas é uma realidade pedestre, em mais de um sentido, o que se encontra.


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