Folha de S. Paulo


A noite em dúvida

Luli Penna/Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli Pena de 15 de Fev de 2017
Luli Pena de 15 de Fev de 2017

Passei mais de 50 anos de vida achando que sabia o suficiente sobre eclipses. Não que eu soubesse muito. O fenômeno, de todo modo, produz em mim uma sensação bastante besta.

Não estou sozinho, talvez. Aparece a notícia no jornal. "Hoje tem eclipse!" É um dos muitos casos em que a imprensa, como todo o gênero humano aliás, tende a exagerar a importância dos fatos.

Não há quem não se prepare para ver o acontecimento. Mas é coisa que já vimos muitas e muitas vezes. Ótimo; a Lua vai sendo encoberta pela sombra da Terra, tudo se passa um pouco mais devagar do que seria desejável, mas logo em seguida acaba –sem nenhuma "dramaturgia", como se diz.

Na peça "Amadeus", de Peter Schaffer –que vi com um Raul Cortez inesquecível no papel de Salieri–, o imperador austríaco (vivido pelo veterano ator Labanca) saía-se de qualquer situação difícil, espantosa ou admirável com o mesmo comentário.

"Eis aí!", dizia ele. Podia ser a mais engenhosa e grácil serenata de Mozart, uma inesperada declaração de guerra, uma queda brutal na arrecadação de impostos, um escândalo conjugal.

"Eis aí!", repetimos, quando o eclipse termina. O extraordinário e o ordinário se resumem a uma coisa só. O esperado acontece, o excepcional segue a rotina, a expectativa se confirma e se frustra em igual medida.

Talvez falte um acompanhamento sonoro, um coral de espantos, um bando de nativos como aqueles que, nas "Minas do Rei Salomão", de Rider Haggard, são iludidos pelos exploradores ingleses, os quais se fazem de magos com o poder de evitar o fim do mundo.

Bobagem colonialista, provavelmente, pois qualquer habitante das selvas deve estar mais habituado a eclipses do que nós, na vida urbana.

De fato. Sei o mínimo possível sobre eclipses, e o de sexta-feira passada me veio com uma excelente novidade.

Tratava-se, asseguram os astrônomos, de um eclipse penumbral. Um meio-eclipse, um quase-eclipse, um pseudo-eclipse, o espectro de um eclipse, um eclipse do próprio eclipse!

Sim, isso existe: a Lua não se deixa encobrir pela sombra total da Terra. Apenas diminui seu brilho. Ingressa numa zona de semiobscuridade: é a inconsciência astronômica, a noite em dúvida, a antessala do nada.

Eclipse penumbral, repito, entreabrindo a boca de surpresa, com a alma grata e a garganta em treva; aceito a nova expressão como se fosse uma dádiva científica, um versículo da noite, uma hóstia sideral.

Não quero exagerar. Só que, com quase 60 anos, é excelente ouvir a notícia de que nem todo eclipse tem a plenitude que se pensa. Feito a meias-tintas, mal e mal percebido por uma fração de sexta-feira, equivale às remissões ocasionais que a memória, a disposição e a saúde conhecem a esta altura da vida.

Onde guardei a chave de casa? Qual a senha da internet? Aumentou a mancha da minha mão? Esse filme de que falam, será que já assisti? Que fim levou aquele ator? Morreu?

Desenvolvi um método obsessivo para recuperar aqueles nomes que a memória se recusa a trazer na hora certa. Vou recitando as letras do alfabeto: a, b, c... Fazendo o cérebro ocupar-se com isso (ou seja, com algo que tem e não tem a ver com a tarefa encomendada), consigo talvez que um caminho paralelo se abra, que um vaso novo se desvie desse coágulo mnemônico.

Verdade que o eclipse penumbral não se faz em termos de tudo ou nada, de acerto ou erro. Não se trata daquele obscurecimento real, irrefutável, de que tratou Thomas Hardy (1840-1928) nos versos que traduzo a seguir, como posso.

"Tua sombra, Terra, do polo ao mar do Equador,/ Procede ao furto da suave luz lunar/ Num traço a estender-se curvo, nítido e sem cor,/ Numa calma que nada pode perturbar.// Como entender que o sol conceda simetria/ Ao semblante desfeito que, bem sei, tu tens,/ E que perfil tão alto e plácido desenhe/ Dos continentes só em faina e agonia?"

Ele continua: "E como se dá que a mortalidade imensa/ Derrame sombra tão pequena, e que nossos sonhos/ Tenham limites que um arco remoto impõe?// Estreita-se assim, entre as estrelas pensas,/ O palco deste mundo, povos em confronto,/ Almas, heróis, jovens mais belas que o horizonte?"

Não, nem sempre. Há o eclipse penumbral. Não produz uma sombra depressiva e reduzida. Suaviza apenas a frieza do astro à nossa espreita.


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