Folha de S. Paulo


'Estrelas Além do Tempo' mostra a resistência do racismo ao talento

Com vários negros indicados para o Oscar deste ano, nas categorias de direção, ator, atriz e montagem, evitam-se os protestos verificados em 2016. Ainda não assisti a "Um Limite Entre Nós", com Denzel Washington e Viola Davis, nem a "Moonlight", dirigido por Barry Jenkins.

Mas imagino que exista uma razão para que "Estrelas Além do Tempo", de Theodore Melfi, não tenha sido lançado há coisa de alguns anos.

A história real de três mulheres inteligentíssimas enfrentando o preconceito racial dentro da Nasa, no começo da década de 1960 -com alguém cantando "Yes We Can" nos momentos de maior torcida-, talvez parecesse uma celebração exagerada do governo Obama algum tempo atrás.

O efeito seria o de sugerir que o racismo nos Estados Unidos já pertence ao passado. Com a saída de Obama e a vitória de Trump, as vozes "politicamente incorretas" (isto é, atrasadas e raivosas) se reafirmam por toda parte, e "Estrelas Além do Tempo" sem dúvida perde sua possível conotação triunfalista.

Mesmo que as três personagens do filme vençam obstáculos imensos, o mais provável é sair do filme ainda com muita sede de justiça.

Com a sede da Nasa num Estado segregacionista, mulheres capazes de fazer proezas no campo da matemática ou da engenharia se veem, porque negras, submetidas a humilhações odiosas.

"Estrelas Além do Tempo" apresenta-as repetidamente, o que diminui um bocado o ritmo da narrativa. Mas seria um erro diminuir a relação das injustiças.

O simples olhar de um colega branco quando a matemática Katherine Goble Johnson se apresenta para o trabalho traz uma hostilidade capaz de fazer com que um gênio mais frágil se confundisse numa conta simples de multiplicação.

As coisas pioram quando ela vai tomar café. Silenciosamente, um bule "para pessoas de cor" é providenciado. O banheiro? De negros? Só a quase um quilômetro dali. De modo que sobra menos tempo para Katherine cumprir as tarefas que lhe passaram. Ela se atrasa. "Não disse? Negros não são tão competentes..."

Instalam computadores na Nasa. Fiquei sabendo, aliás, que "computador" era o nome de uma profissão humana, como "contador" ou "marceneiro", antes que a eletrônica se encarregasse do trabalho de fazer contas complicadas.

Profissão só para mulheres, aliás. Os homens faziam a teoria, elas, o trabalho braçal.

Ainda hoje, fica estranho usarmos "gênio" no feminino. "Gênia"? O uso corrente da língua decreta que isso não existe.

O machismo ajudava o preconceito racial, ensina o filme. A "gênia" negra procura subir de posto. Mas "não há mulheres" nesse tipo de cargos, dizem os racistas, escondendo que o problema é de cor.

Mesmo capazes de engolir tudo isso com astúcia e sangue-frio, as negras do filme enfrentam barreiras estruturais. Há bibliotecas públicas para negros -mas são piores e, assim, a matemática interessada em aprender a usar computadores precisa entrar numa biblioteca de brancos.

Será expulsa da biblioteca, contudo. O que fazer?

Entra aqui a maior ironia de "Estrelas Além do Tempo". A corrida espacial, como se sabe, surgiu durante a Guerra Fria, com os Estados Unidos temendo ataques nucleares e espiões russos o tempo todo.

Oprimidas pelo preconceito, as negras da Nasa acabam tendo de se comportar como verdadeiras espiãs: tratam de descobrir por sua própria conta os "segredos" reservados aos brancos, vão xeretar em lugares a que não têm acesso garantido.

Curioso que não tenham sofrido represálias por suspeita de espionagem a serviço da União Soviética. É como se o próprio sistema soubesse que não se tratava de simpatia pelo comunismo, mas de luta desesperada para se mostrarem, afinal de contas, úteis a seu país. Ou, talvez, espionagem fosse coisa sofisticada demais "para negros"...

Ainda assim, a direita americana não se deixava convencer: o FBI, nas mãos de J. Edgar Hoover, sempre esteve convencido de que militantes pelos direitos dos negros não passavam de "comunistas".

O velho Marx lembrava que revoluções acontecem quando as forças produtivas (isto é, a tecnologia e as exigências materiais do sistema econômico) entram em contradição com a hierarquia social.

Para o bom funcionamento dos foguetes, era necessário contar com talento matemático -não importando a cor de quem o possuísse.

Progresso tecnológico e progresso social dependem um do outro. O futuro vai dizer se Trump conseguirá abrir exceção a isso.


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