Folha de S. Paulo


Filme de Mel Gibson mostra que admitir a diversidade não é fácil

Luli Penna/Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli de 01 Fev de 2017

Numa escala de zero a dez, minha islamofobia está por volta de 8,5. Mas meu antiamericanismo não fica muito atrás, e acompanho a repulsa geral causada pelas últimas decisões de Donald Trump contra a entrada de muçulmanos nos EUA.

Reconheço, de qualquer modo, que admitir a "diversidade" não é tão fácil quanto parece.

Meu interesse por quem "pensa diferente" é dos mais seletivos, e detesto perder tempo ouvindo ou lendo opiniões que, por bons motivos, já rejeitei há tempo do meu tribunal interior. Acho mais produtivo prestar atenção a fatos novos do que a argumentos velhos.

Mas uma boa defesa da diversidade aparece em "Até o Último Homem", filme de Mel Gibson com várias indicações ao Oscar.

Baseia-se na história real de Desmond Doss, um adventista do sétimo dia que participou da Segunda Guerra Mundial, no Exército regular americano, com a condição de jamais pegar numa arma.

Matar pessoas era contra sua convicção; alistou-se mesmo assim, porque julgava indigno ficar em casa enquanto jovens de sua idade arriscavam a vida. Propôs-se a um posto de paramédico, dedicando-se a salvar feridos sem matar ninguém.

O filme não explica direito, mas parece ter havido um erro nos formulários de alistamento; imagino que Doss poderia ter servido na Cruz Vermelha ou em outra função qualquer, sem ter de passar pelo treinamento padrão de qualquer soldado –que inclui, é claro, o manejo de fuzis.

Ele termina num pelotão comum. "Até o Último Homem" põe em cena os paradoxos e impasses burocráticos da situação, talvez exagerando a capacidade dos militares em aceitar –com reservas, é claro– a integridade religiosa do recruta.

Curioso que, no meio daquele dilema, não tenha sido chamado nenhum pastor, nenhum capelão ou filósofo para discutir as implicações da decisão de Desmond Doss.

Minha tentação inicial seria aplicar ao caso o raciocínio moral de Kant (1724-1804). A atitude do soldado só seria correta se pudesse ser generalizada como regra para todos os demais. E, obviamente, um Exército que se recusasse de modo unânime a tocar num fuzil seria uma contradição lógica.

Dessa forma, a ética de Doss só pode existir num mundo em que os demais não seguissem seu exemplo; apresenta-se como exceção, e não como regra. Não sendo regra, não tem como ser seguida universalmente; portanto, não é uma ética aceitável.

Avançando no raciocínio, vi que as coisas não eram bem assim. Seria impossível generalizar a ideia de não pegar em armas para todo o Exército americano. Mas Doss poderia replicar que a ideia pode, sim, ser generalizada –se incluirmos os nazistas e os japoneses em nosso universo de considerações.

Se todos os humanos seguissem a lei de Doss, não haveria contradição no que ele estava propondo.

A questão é se, com isso, não estamos fugindo de outra orientação que também deveria ser seguida "universalmente": a de que cada cidadão deve obedecer às leis do seu país.

Não conto demais se adiantar que o caso de Doss precisará de um "jeitinho" (imoral, talvez?) para dobrar a rigidez dos militares.

Ainda assim, eles poderiam incomodar o soldado com outros argumentos. Imagine que você está escondido com outros dez colegas –e de repente um soldado inimigo aparece com uma metralhadora. Só você viu o inimigo.

Não seria melhor matá-lo na hora, em vez de permitir que ele atirasse em seus dez compatriotas para, em seguida, tratar "eticamente" dos feridos?

O fato é que essas perguntas não foram feitas ao jovem fundamentalista. O filme mostra, com cenas fantásticas, a batalha entre americanos e japoneses pela ocupação de um platô pestilento.

E aí entra o elogio da diversidade. Para vencer nazistas e japoneses, atos de extrema violência foram necessários. Para vencer nazistas e japoneses, também o pacifismo de Doss foi importante.

Com heroísmo incomparável, ele salvou dezenas de feridos (está no trailer, não reclame de mim). Havia lugar, ali, para quem pega em armas e para quem se recusa a atirar.

É pelo respeito à diversidade, aliás, que vale a pena lutar contra um regime totalitário –e, quem sabe, o respeito constitua uma garantia a mais para a vitória. Enquanto Trump canta de galo, lembro que nunca é prudente pôr todos os ovos no mesmo cesto.


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