Folha de S. Paulo


Em livro, cartazes e fotos mostram a melancolia dos antigos transatlânticos

O jornalista inglês Christopher Hitchens (1949-2011) tinha uma lista das coisas mais superestimadas que existem na vida.

"Champanhe, lagosta, sexo anal e piqueniques", dizia ele. Mas quem se dedicar ao tema poderia facilmente acrescentar outros itens. Eu lembraria o caviar, as praias de Búzios, os livros de Roberto Bolaño e, pensando bem, qualquer produto excessivamente caro.

Por definição, uma maleta Louis Vuitton ou um sapato Louboutin custam mais do que realmente valem. Parte do seu valor imaginário está, precisamente, no fato de terem preços proibitivos.

Luli Penna/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 28.dez.2016

Fico na dúvida se, na lista dos superestimados, entrariam os cruzeiros marítimos. Hoje em dia, não. Viraram sinônimo de turismo de massa –e há no Facebook cenas assustadoras de esbórnia e cafonice a bordo.

Participei de dois cruzeiros na década de 1980, quando ainda os cercava uma imagem de exclusividade e luxo. Não viajei em grandes transatlânticos; posso dizer até que gostei, mas certamente havia aspectos decepcionantes na aventura.

Desisti rapidamente do sonho de um romance a bordo; o grosso dos viajantes era de casais da terceira idade, oscilando entre a cor de cera e o cor-de-rosa. O silêncio, a falta de assunto e de apetite, a indiferenciação geral, tudo cobria o navio de um ar de asilo.

Ou de prisão: não havia isolamento possível, a aglomeração era constante, com filas para o refeitório, para o passeio e para o banho de sol. Horários para acordar e dormir, anonimato e tédio.

Nas fotos antigas –penso em 1930 ou 1940– tudo parece mais vazio. A classe alta era menor. Não se economizava tanto espaço.

Um lindo livro intitulado "Transatlânticos no Brasil" acaba de ser lançado pela editora Capivara. Carlos Cornejo e Ana Luisa Martins selecionaram fotos e cartazes das grandes linhas marítimas que faziam a conexão entre Brasil e Europa antes da vitória dos aviões.

Um cartão-postal do vapor Aragon, da Mala Real Inglesa, mostra a saleta cor-de-rosa, com poltroninhas, penteadeira e cortinas de casa de boneca, em que as senhoras de 1912 poderiam preparar sua "toilette" para o jantar.

O paquete L'Atlantique ostenta o que seria um corredor de shopping center. Livraria e floricultura ladeiam o portal de uma galeria iluminada e ampla.

Não há nada nas vitrines nem nas estantes; a fotografia foi tirada quando tudo ainda estalava de novo. Um relógio, com os números de metal do mostrador engastados diretamente no estuque, marca eternamente o meio-dia.

Uma estátua moderna de bronze –vê-se um homem nu levando seu galgo na coleira– guarda a "sala de descanso" da primeira classe. Uma capela, entre românica e moderna, parece feita de tijolos de vidro e ladrilhos de ouro, emoldurando um altar de mármore verde nas suas profundidades de piscina.

Era o triunfo do "art déco", com suas curvas funcionais de aço e ângulos retos de baquelite. Aquela impessoalidade brunida ganha hoje em dia o tom nostálgico e subjetivo dos hotéis falidos, dos olhares de Lauren Bacall, das recordações de uma tia rica.

Não se pense que na segunda classe o ambiente deixe de intimidar. A sala de fumantes do Bretagne, lançado ao mar em 1951, oferece aos viajantes de menor poder aquisitivo longos sofás de franjinhas, entre arandelas e pinturas murais.

Havia também a terceira classe, e mais abaixo a "classe emigrante", da qual infelizmente, e previsivelmente também, faltam registros.

O preto e branco das fotografias contrasta com as cores luminosas dos cartazes de propaganda. O luxo cede, aqui, às imagens de poder. É comum que o Pão de Açúcar –apresentado de ângulos bizarros, os de quem navega– seja desafiado e diminuído pelo avanço da proa triunfal.

Mas o relato dos autores não recua diante dos fatos. A última viagem do Bretagne foi em setembro de 1960. O Andes foi vendido para demolição em 1971. O Massilia explodiu na guerra, em 1944. O L'Atlantique acabou antes, em 1933, depois de um incêndio na primeira classe.

O incêndio, e o trabalho dos bombeiros, continua até hoje; os cruzeiros se abrem para a classe C, enquanto jatinhos se multiplicam, e o grande transatlântico Trump se prepara para zarpar.

PS- Tiro férias até 25 de janeiro. Viajo de avião (classe econômica).


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