Folha de S. Paulo


Atores com afasia mostram a difícil viagem da sobrevivência em peça

O elenco tem muitos problemas. Um ator se desloca muito mal no espaço cênico. De outro, não se entende uma palavra do que diz. Alguns sofrem com dificuldades de memória. Nenhum deles, que eu saiba, é profissional.

Para piorar as coisas (ou não), há 65 pessoas em cena. Seria de esperar um caos absoluto no espetáculo "Do Outro Lado do Oceano", que vi recentemente no teatro Frei Caneca. A peça já saiu de cartaz, mas mesmo assim não deixo passar em silêncio uma das mais emocionantes experiências teatrais que tive na vida.

Luli Penna/Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Luli Penna de 21 de dezembro de 2016

Todos os atores, com uma ou duas exceções, sofrem de graus variados de afasia. Em razão de algum derrame, acidente de trânsito, tumor cerebral ou qualquer coisa igualmente grave, experimentam dificuldades de fala, de memória, de locomoção. Como fazer um espetáculo com pessoas vitimadas por tantas limitações? O desafio é enfrentado regularmente pela Ser Em Cena (www.seremcena.org.br), uma ONG que ajuda na reabilitação de portadores de afasia.

Tudo poderia limitar-se a um evento bem-intencionado, em que familiares concorrem para "dar uma força", como se diz, a pessoas que em geral já não podem desfrutar de uma vida independente e produtiva.

Ocorre que "Do Outro Lado do Oceano" é uma delícia e um divertimento para qualquer tipo de público, com um nível de poesia e criatividade raras de se ver em qualquer espetáculo "normal".

A ideia da diretora Elisa Band (com assistência de Nicholas Wahba) foi colocar em cena uma viagem num grande navio transatlântico. Aos poucos vamos atinando com o que isso significa.

Uma das primeiras cenas apresenta, assim, a inspeção na alfândega da bagagem dos viajantes. Um ator chega com sua malinha: o funcionário abre-a e vai dizendo o que poderá ou não ser levado na viagem.

Os objetos mais simples –um desodorante, um livro, um sapato de cadarço, seja lá o que for– são confiscados do "viajante". Claro, depois de um tumor ou de um acidente, não sabemos mais o que teremos capacidade de manejar. Outras coisas –uma boneca, uma fotografia, uma relíquia do passado– serão, quem sabe, admitidas pelo arbitrário fiscal dessa nova e dura etapa da vida.

A metáfora surge com humor e sutileza, porque apesar de tudo o "viajante" será aceito para entrar no barco.

Outra situação de teste é encenada, aproveitando magicamente as dificuldades de fala dos participantes. Uma placa anuncia: sala de espera para a concessão do visto. Os "emigrantes" se impacientam, começam a reclamar. A balbúrdia se instala. Já não importa que, na verdade, sejam pessoas com problemas reais de fala: o teatro faz com que sejam absolutamente convincentes no papel de sírios, servo-croatas, judeus ou somalis.

Numa festa em que se joga a papelada pelos ares, todos são aceitos e recebem seu visto. Por que não? Sobreviveram ao que lhes aconteceu. É hora de começar viagem.

O mar, com suas tormentas, profundidades e pescarias, dá ocasião a outras cenas e metáforas, muitas vezes engraçadas, outras vezes de grande beleza visual.

Alguém está quase impossibilitado de andar? Move-se como se cada ombro quisesse adotar uma direção? Sua perna se arrasta? Pegue-se uma longa vestimenta branca com fios de prata; amarre-se nessa roupa uma série de balões brancos bem compridos, que sairão do corpo do ator como as patas incontáveis de um caranguejo.

A placa no alto do palco anuncia: observação de criaturas marinhas. Atores se perfilam, com binóculos na mão. O caranguejo-água-viva atravessa a cena. Provavelmente, o ator venceu obstáculos enormes para simplesmente andar de um lado a outro, como se submetido a pressões abissais. Quem, se o visse na rua, não sentiria um movimento de incômodo diante de sua estranheza? Mas, ali, o ator se transformou em maravilhosa criatura marinha.

A plateia aplaude a cada cena, não só porque certamente vê um pai, um irmão, uma avó brilhando em prata e fantasia, mas porque cada um dos "achados" teatrais de "Do Outro Lado do Oceano" merece admiração pelo que é em si mesmo.

Descrevi só alguns. Há dezenas de ideias igualmente encantadoras. O teatro ficou lotado de parentes e amigos. Torço para que a peça volte no ano que vem, para o público em geral. Essa viagem tem de continuar. Ainda que o destino nos livre de acidentes tão traumáticos, estaremos quase todos, cedo ou tarde, no mesmo barco.


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