Folha de S. Paulo


Decoração natalina se transfere para o universo automotivo

Apesar de bárbara, a ideia faz sentido: festas de adolescentes sobre rodas. Em vez de fechar um barzinho, ou de estourar os tímpanos da vizinhança, aluga-se um ônibus, com todas as janelas vedadas ao olhar dos intrusos, e põe-se o veículo a circular pela cidade.

Naturalmente, o ônibus tem de se deslocar com relativa lentidão –embora eu imagine que, estando bem lotado, quanto mais chacoalhar, mais divertido fica. Não fico chateado se, por acaso, meu carro empaca atrás de um desses eventos.

Ando cada vez mais devagar no trânsito da cidade, tanto em função do próprio acúmulo de veículos quanto devido ao excesso de pontos na minha carteira de motorista. Ver uma dessas jamantas escuras à minha frente me traz bastante alegria.

Luli Pena/LuliPena/Editoria de Arte/Folhapress
Luli Penna de 14 de dezembro de 2016

É como se, contida dentro de uma caixa preta, a festa permitisse tudo: urros de viking, vômitos romanos, danças tailandesas, campeonatos de rúgbi e de sumô multissexual. Por certo, toda droga há de ser permitida.

Só não presenciei a saída dos convidados, talvez na porta de um pronto-socorro. Uma caixa de Pandora com o tamanho de uma inteira enfermaria... Acho divertido que, conduzindo o magma humano, exista um motorista sóbrio e cuidadoso, a obedecer, quem sabe, um itinerário racional.

O cérebro minúsculo está alerta para os faróis vermelhos e os cruzamentos, enquanto naquele monólito horizontal trilhões de neurônios entram em ponto de fusão. A caixa preta avança, como um enorme presente de aniversário para o Príncipe das Trevas.

Mas não condeno. Se os abusos têm de ter lugar no mundo, que seja num ônibus, com ponto de partida e de chegada.

Causa-me outra impressão a nova moda natalina em curso na cidade: lâmpadas de LED enfeitam os ônibus comuns, acompanhando os contornos da lataria. Fico mais triste do que animado. Não é a rotina que se quebra, como nas festas motorizadas. É a rotina tentando parecer o que nunca será.

As luzinhas precisariam de acompanhamento musical; sem isso, o que ouvimos é a eterna respiração laboriosa do motor, das portas e dos freios –as paradas que parecem ter acontecido por exaustão, as ladeiras que se vencem a custo, resignadamente. E resignadamente, também, o ônibus aceita a falsa festa do Natal.

Quando as luzinhas piscam, até que vai. Mas há casos em que a iluminação gelada simplesmente esquematiza a estrutura de metal do ônibus, evocando a imagem de um esqueleto fluorescente. Não é um ônibus natalino, é um ônibus fantasma.

Seja como for, alguns carros particulares já seguem a moda, adotando outras cores além do azul polar. Vi uma van com sinos e cerejas, ramos de pinheiro e estrelas de Belém.

Compreendo. Diminuíram as decorações comerciais neste ano de crise –o casarão que era a sede do Banco de Boston na avenida Paulista, tradicional recordista em delírios de prosperidade fraterna, encontra-se desalugado.

Talvez roubem as luzinhas se você as puser na grade do prédio. No carro, é mais difícil. E o carro, em São Paulo pelo menos, é de fato a expressão de seu espaço pessoal. A casa ninguém vê, atrás de muros altíssimos, ou enfiada neste ou naquele andar do prédio –só a sacada, onde você não aparece, pode comportar algum espírito de festa.

O carro é tudo o que resta. Impossível apresentar, como símbolo de status, um modelo esportivo daqueles rebaixados, em que você praticamente se deita para dirigir. Com tantas valetas e buracos, e com os necessários limites de velocidade, nenhuma Ferrari sobrevive.

A solução foi fazer com que o carro não mais crescesse na horizontal, e sim na vertical. Os Land Rovers e congêneres erigiram-se em casas sobre rodas, são sobrados ambulantes, pequenos castelos de um senhor rural.

Nossa intimidade, assim como nos ônibus de festa, fica preservada, em relativa segurança.

É curioso como tanta gente (e confesso fazer parte do grupo) acha que pode tirar meleca do nariz quando está dirigindo. Sim, qualquer pessoa pode me ver nessa atividade. Mas estou nos meus domínios, entre quatro paredes de lata. Embora me vejam, não podem me incomodar.

Que o carro-casa então se enfeite para o Natal. Será uma tenda no deserto, um novo camelo na caravana dos Reis Magos, um trenó blindado andando a esmo e sem presentes, lançando com lâmpadas de sódio, numa engrenagem de vidro e lata, suas mensagens de fraternidade e paz.


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