Folha de S. Paulo


Sul-coreanos e japoneses podem dar lições de malandragem aos brasileiros

Com tantos casos de corrupção no Brasil, não falta quem atribua o fenômeno aos vícios originais de nossa cultura –como o patrimonialismo ou a herança católica.

Afirma-se (eu mesmo achei isso durante um tempo) que seria hipócrita reclamar de políticos desonestos quando estamos, na maior parte do tempo, dando nossos jeitinhos no Detran ou pagando consulta médica sem exigir recibo.

Alguns comportamentos cotidianos de fato me parecem chocantes. Faz muito tempo, mas não me esqueço de um parente que, numa festa de casamento, meteu algumas notas no bolso de um garçom para garantir uma oferta ilimitada de drinques e salgadinhos. Ouvi depois que se trata de uma prática comum.

Luli Pena/LuliPena/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração de Luli Penna de 07 de dezembro de 2016

Menos comum foi o que me contaram de uma freguesa de supermercado. Adepta de uma modalidade específica do café Melitta –parece que a Sul de Minas é a melhor de todas–, ela se incomodava com o fato de nunca encontrá-la nas prateleiras. Sempre havia quem comprasse tudo antes.

A solução foi pagar uma propina para alguém do supermercado, que se compromete agora a avisar pelo telefone quando a bendita marca chega no caminhão.

É esperteza e energia demais, a meu ver, para vantagens tão pequenas. Seja como for, não vejo relação de causalidade direta entre essa corrupção miúda e o desvio sistemático de verbas públicas.

De minha parte, estou cada vez mais convencido de que a cultura tem menos importância para a corrupção do que a arquitetura institucional de cada país.

Os que veem no Brasil a pátria insuperável da pilantragem e do jeitinho podem se divertir e se surpreender com dois filmes do Extremo Oriente lançados Neste ano.

"Um Dia Difícil", do sul-coreano Kim Seong-hun, é uma ótima mistura de comédia e suspense, e pode ser encontrado na internet. O herói da história é um policial capaz de dar lições ao mais refinado malandro nacional.

Dirigindo bêbado a caminho do velório de sua mãe, ele atropela uma pessoa na estrada. Esconde-se dos guardas de trânsito; dá uma carteirada para evitar o bafômetro; resolve enfiar o defunto no porta-malas do carro.

A confusão está apenas começando. Como se livrar do cadáver? Lembremos que ele tem outro à disposição, o de sua própria mãe.

O engenho do protagonista só tem rivais na inteligência e na brutalidade de seu adversário –um superior seu na hierarquia da polícia, altamente corrupto, com interesse especial em achar o corpo do atropelado.

Violência, improviso, comédia e corrupção fazem de "Um Dia Difícil" a contestação de qualquer teoria sobre o que o Brasil tem de tão particular assim nesse tipo de coisas. O filme até brinca com um conhecido estereótipo –o de que os coreanos são ótimos em matemática.

Bem, mas é a Coreia do Sul, país em que manifestações pela renúncia da presidente devido a escândalos com dinheiro público se sucedem semanalmente. O que dizer do Japão?

Sempre tivemos, graças a nosso contato com as primeiras gerações de imigrantes, a imagem dos japoneses como especialmente confiáveis, regrados e até inflexíveis. No maravilhoso "Depois da Tempestade", de Hirokazu Kore-eda (em cartaz em São Paulo), acompanhamos a história de um escritor fracassado, embrulhão para brasileiro nenhum botar defeito.

Sem ter como para pagar pensão para a ex-mulher, o protagonista arranja emprego como detetive particular, tirando dinheiro extra como chantagista, e gastando tudo no jogo. Ele mente o tempo inteiro, remexe nos guardados da mãe para encontrar algo de valor e dá uma simplíssima e magistral lição de como conseguir desconto numa loja de artigos esportivos.

Seria a malandragem em pessoa, não fosse o lindo conflito de consciência que vive nas relações com o filho pequeno. Nesse campo das relações entre pai e filho, "Depois da Tempestade" poderia ser visto como uma espécie de "Ladrões de Bicicleta" contemporâneo, em que o drama operário filmado por Vittorio de Sica em 1948 é substituído pela ambiguidade moral de um mundo em que o trabalho começa a desaparecer.

O arranjo, o expediente, o "bico", o "jeitinho" e o trambique serão, talvez, reflexo de uma situação urbana em que as organizações trabalhistas clássicas deram lugar à precariedade do cada um por si. Não espanta que tantos ex-sindicalistas, aliás, tenham sido rápidos nessa adaptação aos novos tempos.


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