Folha de S. Paulo


Gozações com atrasados do Enem sugerem país mais favorável ao rigor

Os mais antigos se lembram das manchetes que apareciam pouco antes da Semana Santa: "Não vai faltar peixe na sexta-feira, garante Secretaria do Abastecimento".

A abstinência de carne nessa época já não se observa mais em nosso país; ficamos muito menos católicos, e os próprios religiosos têm mais do que cuidar. Sou do tempo em que a maioria dos cinemas nem pensava em exibir outra coisa além de "O Manto Sagrado" ou produções italianas sobre a Paixão de Cristo.

De todo modo, o fenômeno das pautas previsíveis dificilmente será abolido no jornalismo. Um profissional experiente me transmitiu, certa vez, sua implicância particular: as reportagens televisivas sobre a chegada do inverno. A frase não muda: "É tempo de tirar os casacos e sobretudos do armário"... E tome imagens de uma "cidadã" abrindo o guarda-roupa. O tema é mais antigo do que a naftalina.

Editoria de Arte/Folhapress
Ilustrada - Contra de 16/11/2016

Mas também existem os clichês mais recentes. O mês de novembro traz um clássico: os atrasados do Enem. São as cenas invariáveis de desespero dos que veem as portas do local de prova se fechando bem à sua frente, com as lágrimas e as explicações que se conhecem.

Ainda que a cena seja igual, vou percebendo que o país dá sinais de ter mudado.

Todo guia turístico ou manual para estrangeiros concorda: pontualidade não é o forte dos brasileiros. Mesmo assim, a atitude diante dos atrasados do Enem já é outra.

Imagino que, até não muito tempo atrás, as antipatias gerais se voltassem contra a rigidez dos funcionários, que com precisão suíça trancam os portões no horário estipulado. Coitada da mocinha que se esfalfa! Pelo menos não é "caxias".

O sentimento é outro hoje em dia. Alguns pândegos resolveram montar o "Camarote do Enem" (há vídeos no YouTube). Diante da portaria da Uninove, em São Paulo, ficaram esperando os atrasados com churrasqueira, cadeira de praia e isopor de cerveja.

Um corredor de gozadores se formou, cantando com melodias de torcida futebolística a frase "e o portão fecho-o-ou". O espírito era cruel, sem dúvida, mas os atrasados no fim confraternizaram com quem os humilhava, bebendo e ensaiando alguns passos da dancinha.

Duas formas de "brasilidade", portanto. A antiga era adepta de menor rigidez e tendia à tolerância sentimental. A mais recente se coloca claramente em favor da lei e das autoridades, mas não dispensa a pagodeira no fim.

A mesma ambiguidade se revela nos comentários de Cauê Moura, cujo canal no YouTube conta com mais de 4 milhões de seguidores. Com barba de troglodita e uma veemência digna de Enéas, ele insulta os atrasados do Enem.

São "jumentos" e "têm de se f..." Uma mulher foi barrada porque tinha esquecido seu RG em casa. "Tem de ser muito buuuurra", triunfa o blogueiro.

Outro chegou de moto, cinco minutos antes do exame, achando que poderia estacionar dentro da faculdade. Cauê Moura reproduz em voz alta o raciocínio do infeliz, imaginando uma fala debiloide: "Dã, eu pensei que deixaavam...".

Vai usar a moto para trabalhar o resto da vida, fulmina o astro do YouTube. Mas não há propriamente raiva em sua violência. "Ah, quer dizer que no dia mais importante da sua vida escolar, no dia em que você vai decidir o seu futuro, você dormiu no ônibus e perdeu o ponto? Dia tranquilo esse seu, né? Jumeeento!"

No fundo, Cauê Moura é dos muitos que estão cansados de se apiedar de quem poderia ter sido um pouco mais responsável com os próprios compromissos. O curioso é que, neste caso, a atitude não se confunde com o tradicional discurso da direita. Ele defende os temas escolhidos para a redação do Enem.

No ano passado, a questão foi a da violência contra a mulher. Agora, os candidatos tiveram de escrever sobre intolerância religiosa.

Se alguém reproduzir o que ouviu de alguns pastores, vai zerar na prova, brinca o youtuber. Mais uma vez, ele dubla com voz de idiota os que reclamam do "progressismo" das questões: "Ué, então o que é que eu faço com o meu retrocesso?".

Cauê explode: "Enfia no meio do c..! Pega o seu preconceito e mete no brioco!". Bastante gordo e com risadas de ogro, ele faz um banquete com a burrice alheia.

Há atrasados e atrasados, certamente, no Brasil contemporâneo. Mas há sinais de ter-se esgotado o tempo da tolerância, ou pelo menos da timidez, com esse tipo da coisa.


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