Folha de S. Paulo


Mostra de Calder traz esculturas de um mestre com traços de criança

O escultor americano Alexander Calder (1898-1976) passou longas temporadas na França, entrando em contato com artistas de vanguarda (em especial os surrealistas) desde a década de 1930.

Foi Marcel Duchamp, aliás, quem deu o nome de "mobiles" para a principal invenção plástica de Calder: estruturas levíssimas de arame, em geral presas no teto, de onde pendem finas lâminas ou pétalas de metal, que oscilam no ar.

Visitando o ateliê de Calder em Paris, em meados da década de 1940, o filósofo Jean-Paul Sartre quase foi atingido por uma das placas balançantes do escultor. "Um móbile, até aquele momento em repouso, tomou-se de violenta agitação contra mim."

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 7.set.2016

"Dei um passo para trás", continua o filósofo, "e achei que tinha me colocado fora de seu alcance." Só que, depois de ter cessado a agitação e parecer "ter recaído na morte", a escultura "pôs-se indolentemente em marcha, como contra a vontade, girou nos ares e quase acertou o meu nariz".

Em sua repulsa face a tudo que é inerte, acomodado e sem liberdade neste mundo, o filósofo celebrava as esculturas de Calder por se constituírem em "seres estranhos, a meio caminho entre a matéria e a vida".
Quando se mexem, os móbiles "ora parecem ter um objetivo, ora parecem ter-se esquecido do que queriam no meio do caminho". A escultura "ondula, hesita, diríamos que se engana e se corrige".

Poderia ser comparável, então, à consciência humana; mas o próprio Sartre refina a comparação, dizendo que os móbiles "são ao mesmo tempo combinações técnicas, quase matemáticas, e o símbolo sensível da Natureza". Essa "grande e vaga Natureza", completa, "da qual não sabemos nunca se é o encadeamento cego de causas e efeitos ou o desenvolvimento tímido, sempre retardado, desfeito e interrompido, de uma Ideia".

No momento em que escrevia esse texto (1946), Sartre estava se debatendo justamente entre a defesa de uma filosofia fundamentada na liberdade do ser humano e os apelos da rígida ortodoxia do "materialismo dialético", com a suposta descoberta de leis infalíveis do desenvolvimento histórico.

A impressão que se tem, vendo a mostra de Calder em cartaz no Itaú Cultural, é bem distinta. Isolado entre paredes brancas, sem nenhuma janela aberta por perto, cada mobile parece mexer-se o mínimo possível.

O que se vê é a tentativa, quase que totalmente atingida, de manter-se em equilíbrio. De grandes dimensões, ou quase no tamanho de libélulas, os móbiles impõem respeito e distância ao espectador.

O respeito não exclui, por certo, um sorriso de encantamento. Mas provoca certo silêncio, quase religioso, como diante de uma coisa a ponto de romper-se.

Movimento, capricho e arbitrariedade -características tão típicas de uma criança de quatro ou cinco anos- parecem mais visíveis em outro aspecto da obra de Calder: o seu "circo", que pode ser visto numa das salas do Itaú Cultural graças a um lindo documentário de Carlos Vilardebó.

Nesse filme de 1961, o artista de cabelos brancos manipula seus bonequinhos -o atirador de facas, o casal de trapezistas, os cães amestrados, o leão- como se fosse uma criança.

É comum dizer, diante de uma obra de arte moderna, que "até uma criança faria isso". Por vezes, a opinião não é tão errada assim.

Feitos de cortiça e de arame, vestidos com pedacinhos de pano ou de barbante, as figuras do "Circo Calder" parecem de fato feitas por uma criança -só que não. Em sua precariedade, rodinhas de madeira pintada sugerem com astúcia perfeita o ângulo e o movimento das patas de um basset.

A tecnologia moderna aposta na velocidade, na assepsia do metal e do plástico, no domínio sobre o acaso e o acidente. Imagine-se alguém que, como uma criança, não percebesse para que serve tanta tecnologia, e quisesse apenas imitá-la inutilmente. A mostra de Calder -e de suas influências, muito bem selecionadas, sobre artistas brasileiros- está em cartaz até dia 23/10.

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Talvez o esquerdismo não seja tão forte na Folha quanto no jornal "Le Monde", que em editorial considerou o impeachment de Dilma "se não um golpe, no mínimo uma farsa". Mesmo assim, os que atacaram a sede da Folha na semana passada ignoraram, em seu fascismo de vândalos, a diversidade de opiniões que é marca do jornal. Depredar qualquer jornal é odioso; no caso da Folha, sinal de analfabetismo.


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