Folha de S. Paulo


Enrolados, argumentos viram 'jiboia jurídica'

Alan Marques/ Folhapress

É golpe, porque nenhum crime de responsabilidade foi cometido. Não é golpe, pois todo o processo está regulado pelo Supremo, com amplo direito à defesa. Os argumentos foram repetidos ao longo de toda a crise do impeachment, e o discurso de Dilma Rousseff aos senadores, nesta segunda (29), naturalmente voltaria a colocar o tema em pauta.

Firme nas suas intervenções, apesar da costumeira dificuldade com a sintaxe, a presidente afastada sustentou sem abuso retórico a tese de que está sendo vítima de um golpe.

Não militar, evidentemente, não pela força, mas por meio de artifícios jurídicos. Para Dilma, as formalidades do processo podem ser perfeitamente obedecidas, mas ainda assim encobrem um conteúdo injusto e arbitrário. Se perde o mandato por um crime que não cometeu, trata-se de golpe parlamentar.

Dois senadores contestaram a lógica desse argumento. Na opinião de José Medeiros (PSD-MT), a tese de Dilma equivale a dizer que o julgamento só seria legítimo na hipótese de uma decisão a seu favor.

Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) formulou a ideia de modo mais popular. "Vossa Excelência diz que respeita o processo, desde que seja absolvida. É como o pai que deixa o filho torcer para qualquer time, desde que seja o Flamengo".

Se está no Senado respondendo às perguntas, é porque admite a legitimidade do processo, acrescentaram outros adversários de Dilma. Sim, respondeu a petista. Não é golpe neste momento. Mas se condenarem uma inocente por crime de responsabilidade que não houve, um golpe terá sido consumado.

Impossível, portanto, evitar a discussão em detalhes os dois pontos da acusação contra Dilma Rousseff: ter feito gastos sem autorização do Congresso (os créditos suplementares) e ter se valido de créditos do Banco do Brasil para financiar os produtores rurais (as chamadas pedaladas do Plano Safra).

Diga-se que um bom número de senadores enfrentou especificamente essas questões, em meio a outras perguntas que caíam nas generalidades relativas ao "conjunto da obra": para Magno Malta (PR-ES), por exemplo, cada lado tem sua interpretação, e tudo se enrola numa "jiboia jurídica", em contorcionismos contra e a favor.

Mas a jiboia teria de ser enfrentada. Seguindo argumentos várias vezes apresentados pelos seus defensores, Dilma afirmou que os atrasos de seu governo em compensar os gastos do Banco do Brasil com ajuda a agricultores não foram empréstimos. Além disso, pagou o que devia, de uma vez só, quando mudou a compreensão do Tribunal de Contas sobre o assunto, em 2015 -as pedaladas foram em 2014. Mais ainda, a decisão sobre as pedaladas não era responsabilidade sua.

Quanto aos créditos suplementares, Dilma leu o artigo da Constituição que exige autorização do Congresso. Sim, essa autorização deve vir em lei, e essa lei existe: foi a Lei do Orçamento, aprovada pelo Legislativo, que permitiu seus gastos. Sim, esses gastos devem seguir as metas de controle de gastos, como manda outra lei, a de Responsabilidade Fiscal. Essas metas, entretanto, só devem ser cumpridas no final do ano. Os créditos foram abertos em meados de 2014, e sem tais gastos a administração iria parar.

Antonio Anastasia (PSDB-MG) entrou, contudo, nos detalhes. Era preciso, pela lei orçamentária, avaliar periodicamente a disponibilidade financeira do governo. No mesmo mês em que determinou créditos suplementares, Dilma recebia reavaliação das metas de superavit: de R$ 55 bilhões caíram a R$ 5 bilhões. Já estava claro, e Dilma não quis perceber, o sufoco financeiro.

Achar que o desemprego, a inflação, a queda do PIB se deveram a esses poucos créditos e ao Plano Safra é simplesmente absurdo, retrucou Dilma, mostrando em gráficos a queda dos preços de nossas exportações e a alta internacional do dólar depois do segundo turno.

Discussão insolúvel nas circunstâncias, como se vê. As dificuldades de todo o debate nascem da desproporção entre os atos orçamentários específicos e o que significou todo o governo dilmista; desproporção, também, entre a dimensão dos supostos crimes e da pena que a lei prevê.


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