Folha de S. Paulo


Contradições mestiças

Não é possível contentar todo o mundo, mas a abertura da Olimpíada do Rio chegou bem perto disso.

Ainda assim, houve exceções. O "New York Times" reprodu- ziu a opinião de uma psicóloga brasileira, para quem a presença da loira Gisele Bündchen destoava de tudo o que se fala a respeito do Brasil como país da mistura racial.

Engraçado, fiquei com uma impressão exatamente inversa. Pareceu-me notável justamente o quanto Gisele, e também Guga, ficaram minoritários numa festa mestiça.

De Paulinho da Viola ao ex-maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima, que acendeu a pira olímpica, ficou evidente que a cor dos brasileiros é morena, mulata, bem pouco branca. Cantores e atletas, quase sem exceção, testemunhavam uma mistura de raças de que não se tem muita notícia quando se vai a um shopping ou a um restaurante chique.

Sem dúvida, a meritocracia funciona mais no esporte e na música do que em outras áreas, como a política ou as chamadas profissões liberais.

Desse ponto de vista, a cerimônia de abertura funcionou como uma espécie de utopia: a cara do Brasil seria mais ou menos essa em todos os lugares se não existissem as barreiras econômicas, sociais, educacionais e culturais que se conhecem em atividades de prestígio.

Mas a utopia pode ser uma antiutopia também. O elogio da miscigenação brasileira traz ambiguidades.

Penso em outra cena da festa, a que mostrava a escravidão. No espírito "para cima" de todo o evento, não seria de bom-tom mostrar cenas de horror e violência. Seria odioso, por outro lado, simplesmente comemorar a "vinda" dos africanos ao Brasil.

Mostraram-se o trabalho e o sacrifício dos escravos, arrastando pesos nos pés.

Tudo certo, penso eu. Mas o que faltou? Faltou uma coisa que poderia ser importante –mas não é culpa dos realizadores da festa terem passado por cima do fato.

Não se mostrou a Abolição. Com certeza, o processo envolveu lutas, mobilizações, debates, interesses contrariados, até sair vitorioso.

Ninguém se lembra muito disso no Brasil. E isso diz muitas coisas, bastante contraditórias e significativas.

Primeiro, a de que a Abolição existiu, mas não existiu de verdade. Extinta a escravidão, os negros continuaram amargando o pior do que o Brasil tem a oferecer. Natural que não se comemore muito aquele acontecimento.

Por outro lado, caímos numa armadilha. É como se a miscigenação, esta sim exaltada todo o tempo, fosse entendida como uma espécie de "libertação" invisível, uma "abolição" de alcova, um congraçamento –ignorando-se o quanto de estupro, de abuso e de assédio pressupunha.

Nada pior do que barreiras imóveis entre brancos e negros. A mestiçagem nos livra dessa compartimentalização visual, e isso é uma ajuda; mas não há razão para que a consideremos um "mérito" nosso.


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