Folha de S. Paulo


Humor do Porta dos Fundos em filme não é incorreto, é errado mesmo

Sou insuspeito para falar mal de "Porta dos Fundos - Contrato Vitalício", o longa-metragem do grupo de Fábio Porchat, Antonio Tabet e Gregorio Duvivier, porque em geral acho muita graça nos vídeos que eles produzem para o YouTube.

Sou também suspeito, porque –diferentemente de qualquer pessoa que eu conheça–não acho nenhuma graça nos filmes de Monty Python. Piadas com doença, defeito físico, hospital, tortura, tendem a me causar muito desconforto.

Pronto. Já começo a falar e imagino algumas reações: "Ele está defendendo o humor politicamente correto... Mas o humor politicamente correto é impossível". Concordo, em boa medida. Seria difícil fazer graça sem caricaturar algum grupo humano, e seria inócuo o humor que não servisse, em certa medida, para exorcizar nossos medos e fragilidades.

Mesmo assim, piadas com UTI, por exemplo, teriam de ser excepcionalmente engraçadas para que eu conseguisse aguentar. Talvez exista até uma regra aí: quanto mais incorreto e sombrio o tema, mais engenhosa precisa ser a piada para dar conta do mal-estar produzido.

Desconfio que ocorra exatamente o inverso: só pelo fato de "ousar" abordagens com temas mais pesados, o comediante acha que está com a vida ganha. Não se diferencia o riso produzido pelo incômodo daquele ocasionado por alguma graça real.

"Contrato Vitalício" faz piadas com tortura, por exemplo. Em tese, a ideia poderia dar certo. Antonio Tabet é um detetive particular, contratado para descobrir o paradeiro de outro personagem do filme.

O tipo do investigador, truculento e entediado, foi reproduzido à perfeição. Tudo renderia muito se o filme se dedicasse a ironizar o torturador. Mas o erro, a meu ver, é que "Contrato Vitalício" não fez graça com o torturador; tentou fazer da tortura um fato cômico.

Há diversos motivos para dizer que isso não é possível, mas apresento um argumento exclusivamente técnico. O problema aparece num filme de 1985, "Brazil". O diretor Terry Gilliam, integrante do grupo Monty Python, resolveu fazer humor em torno de uma senhora que se submetia a seguidas cirurgias plásticas. A cada nova operação, ficava mais disforme, com o rosto praticamente em carne viva.

Como bem se sabe, a lógica de uma piada ou de uma "gag" no cinema está no fato de que necessita ter um final de impacto. Joga-se com a expectativa e com sua brusca reversão.

Enquanto o drama prossegue por acumulação, por acréscimos gradativos, a comédia só funciona, em geral, quando depois de estabelecido um determinado estado de coisas tudo desaparece, ou explode, num ato de mágica. Uma coisa engraçada não se tornará mais e mais engraçada à medida que simplesmente se intensifique. Depois da intensificação, é preciso um desfecho. A mulher de "Brazil" ia ficando cada vez mais horrível, sem que o alívio da graça viesse a dissolver, e dar uma saída, para o horror imaginado.

Do mesmo modo, a tortura é uma coisa que tende a não ter fim. O personagem de "Contrato Vitalício" pode ser bem atrapalhado enquanto investigador, mas quando ele tortura, tortura "de verdade". A cena perde a graça, não porque eu seja politicamente correto, mas porque os próprios humoristas não sabem como se desvencilhar dela.

Esse erro da "acumulação" se repete em outras situações do filme. Os autores tiveram a ideia de ironizar uma famosa especialista em preparar atores para cinema –dizem que seus métodos são violentos e humilhantes.

Na história de "Contrato Vitalício", um diretor maluco (Gregorio Duvivier) está rodando um filme péssimo. Contrata então uma preparadora de atores (Júlia Rabello) que adestra, como se fosse um cão sarnento, um dos membros do elenco.

Sem ser engraçada de início, a vinheta procura arrancar o riso exagerando sempre as humilhações a que Rafael Portugal é submetido. Mas no humor, como em tantas outras coisas, menos é mais.

Chegamos aqui a outro defeito de "Contrato Vitalício": o de supostamente "criticar" celebridades e pessoas ligadas à indústria cultural. A personagem de Júlia Rabello "ironiza" uma preparadora de atores –e quem sabe de quem se trata irá assentir com a cabeça.

"Hum, hum", dirá o espectador. "Eis um filme em que o humor é crítico e inteligente." Desculpem-me, mas cresce minha implicância com o chamado "humor inteligente". "Contrato Vitalício" é uma tortura. coelhofsp@uol.com.br


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