Folha de S. Paulo


Policiais do passado

O primeiro livro de Agatha Christie que eu li não tinha Poirot nem Miss Marple. Era uma série de contos intitulada "O Detetive Parker Pyne".

O personagem se especializava não em resolver crimes, mas em oferecer a seus clientes situações de emoção e aventura. Donas de casa entediadas, pensionistas sem perspectiva, jovens sem ter o que fazer da vida procuravam Parker Pyne e acabavam metidos em embrulhadas mais sérias do que pareciam a princípio.

Eu lia devagarinho, meio conto por dia, para que o livro não acabasse. Foi uma revelação, entre as muitas que tive na literatura policial.

Passei a guardar dinheiro da mesada para comprar os outros livros de Agatha Christie, editados pela Nova Fronteira. As capas eram lindas, algo parecidas com os quadros de Magritte, embora mais complicadas.

De um envelope aberto saía um trem. A carta de baralho parecia mergulhar num coquetel fosforescente. Chaves se soltavam perto de um cenário egípcio.

Talvez a literatura policial seja o surrealismo explicado. Na mesma época comecei a ler alguns textos de Freud. Era tudo a mesma coisa: o poder da Razão, mais forte do que as bobagens do sonho e do desejo.

Li depois um diálogo de Platão, o "Mênon". Não era mais difícil nem mais exigente do que Christie.

A partir daí, enfraqueceram meus pendores para o Mistério e a Transcendência. Tudo, graças a Hercule Poirot, a David Hume, a Bertrand Russel, era explicável. E, quanto ao inexplicável, ora, que continue assim e não me venha com lorotas.

Eu passava férias intermináveis numa cidade de praia, que contava (bons tempos) com duas ou três livrarias. Na verdade (bons tempos uma ova), eram um misto de loja de guarda-sóis, de óleos de bronzear, de farmácia, banca de jornais e livraria. Enquanto os livros de Agatha Christie custavam 13 cruzeiros, você podia comprar a 3, 50 outras publicações policiais.

Tratava-se de uma importação portuguesa, a Colecção Vampiro, que ia chegando aos trezentos volumes. A compra era de alto risco, ao menos no começo. Ao lado de bons clássicos da literatura policial, a editora apresentava representantes da escola "hard-boiled".

A saber, a dos detetives que confiavam menos na dedução do que nos próprios punhos.

Mas havia muitos detetives da velha escola, cerebrais e excêntricos, naqueles volumezinhos pretos, com um pequeno morcego a dar conta, erroneamente, do espírito da coisa.

Entrei no mundo dos papalvos, das cuecas femininas, das peúgas que se tiravam do pé depois de desamarrar os sapatos. O vocabulário português não era sinônimo de ingenuidade; era marca de iniciação.

Pois então, a boa notícia é que em Portugal estão reeditando a Colecção Vampiro. Dá para comprar pelo site wook.com, e chega rápido.

Revejo as capas toscas, mas que são como deveriam ser. No primeiro volume da coleção, alguém se curva diante de um papel revelador. O segundo volume é pior: um esqueleto serve drinques.

Bem melhor. Trata-se de "Vivenda Calamidade", de Ellery Queen. Melhor e mais romântico do que o primeiro volume da Colecção Vampiro, um livro de S.S. Van Dine.

A editora acrescentou, nessa nova encarnação, a fotografia dos autores. S.S. Van Dine não poderia ser mais caricato, com sua piteira e seu cavanhaque pontudo.

"Os Crimes do Bispo" é um daqueles policiais laboriosos, em que se torna vital saber se alguém saiu de casa às nove ou às nove e meia.

Representa, contudo, a superstição da Inteligência, do QI. Philo Vance, o detetive, é capaz de tudo. Fico a um passo de dar risada quando o protagonista exibe seus conhecimentos sobre matemática ou xadrez.

O culto do QI pode ser tão burro quanto o culto da pancada. O segundo volume, de Ellery Queen, é uma delícia. Pseudônimo de dois escritores americanos, primos que poderiam ser gêmeos na fotografia, Ellery Queen faz maravilhas em "Vivenda Calamidade".

O defeito do autor, a meu ver, era tornar a vítima uma espécie de charadista, capaz de, nas agonias da morte, inventar um trocadilho ou anagrama que pudesse resolver o crime.

Não importa. Não importam os crimes do passado. Importa voltar à minha inocência, quando eu comprava livros desse tipo.

Inocência? Nunca existe. O que existe é a burrice.


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