Folha de S. Paulo


O conjunto da obra

Foi kafkiano. Dois especialistas contrários ao impeachment (Ricardo Lódi, da UERJ, e Geraldo Prado, da UFRJ) abriram com exposições extremamente técnicas a sessão de ontem da Comissão Especial do Senado encarregada de examinar o afastamento de Dilma Rousseff.

Para Prado, no processo do impeachment não há como empregar termos como "crime", "responsabilidade", "dolo" ou "culpa" no sentido com que geralmente os entendemos.

Dilma assinou decretos permitindo gastos sem autorização do Legislativo: é o que diz o pedido do impeachment. Mas não é bem assim, argumentou Prado. Um decreto autorizando gastos é um ato complexo de governo, dentro de uma estrutura burocrática. Sua assinatura não pode ser considerada uma "ação" no sentido do direito penal; tratou-se apenas de "ação neutra".

Ele deu o exemplo. Um dos decretos autorizava gastos para melhorar o sistema de armazenamento de dados na Justiça Eleitoral. O pedido vinha do Judiciário, portanto, com a chancela do presidente do Conselho Nacional de Justiça. Outro gasto se referia a reformas no fórum da cidade de Pedro Leopoldo (MG). O pedido era acompanhado de 18 laudos técnicos.

Seria absurdo imaginar que a presidente da República tinha algum "propósito criminoso" ao assinar documentos desse tipo, argumentou Prado. E não haveria como dizer que tais gastos afetavam a realização da meta de superavit fiscal.

"Mágica jurídica", reclamaria Álvaro Dias (PV-PR), diante dos argumentos de Lódi e Prado. Eles repetiam, sem dúvida, pontos já lembrados pela defesa de Dilma em outras ocasiões. Mas estabeleciam com mais detalhe, entretanto, a dimensão realmente diminuta dos atos presidenciais que justificariam o pedido de impeachment.

"É como aplicar quimioterapia para tratar de um resfriado", disse o ex-presidente da OAB, Marcelo Lavenère, também convidado para a sessão.

Contrário ao impeachment de Dilma, foi ele quem encaminhou o pedido de afastamento de Fernando Collor em 1992. Sua exposição, bastante genérica, traçou um paralelo entre as duas situações históricas.

Ninguém defendia Collor nas ruas naquela época, disse Lavenère. Hoje o que se pretende é destruir um "projeto" em prol dos mais pobres –e o impeachment de Dilma, sugeriu, tem apoio financeiro dos Estados Unidos. Mais tarde, Lavenère defenderia o aumento da dívida pública e as pedaladas como um gasto "pelo bem do povo".

O descompasso entre esse tipo de apelo e os argumentos legais sobre responsabilidade fiscal era desnorteante.

Tome-se o caso dos atrasos do governo no pagamento do Plano Safra ao Banco do Brasil. Seria isso o equivalente a uma operação de crédito, coisa vedada em lei? Nunca, disseram os especialistas.

Primeiro, pagar não era responsabilidade de Dilma Rousseff; segundo, não havia prazo legal para o pagamento; terceiro: um mau pagador não é criminoso, não roubou ninguém; quarto, o que o governo devia para o Banco do Brasil não era sequer o dinheiro de um empréstimo, mas sim a quantia necessária para compensar o BB, que empresta dinheiro a agricultores com juros mais baixos do que o mercado.

Quem não teve medo de números foi o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO): com gráficos coloridos, mostrou de que modo o governo Dilma suspendeu gastos nos primeiros meses de 2015, e como no terceiro trimestre depois estourou todas as previsões. Daí surge, argumentou, uma situação em que agora se corta todo tipo de gasto social, com milhões de desempregados e inflação desmedida.

Era, de volta, o tema do "conjunto da obra", pelo qual Dilma Rousseff vai também sendo julgada.

Decretos não autorizados e pedaladas continuam, entretanto, a complicar o debate, com poucas pessoas (mesmo entre os senadores) capazes de ter opinião clara e embasada sobre isso.


Endereço da página: