Folha de S. Paulo


Dois quilos de arroz

Você quer reformar a sua casa e contrata um arquiteto. Combina o prazo de conclusão da obra, e o dia em que pagará pelo serviço. O arquiteto conclui o trabalho na data certa. Aí você não paga.

O que acontece? O arquiteto tem um "direito de crédito" com relação a você. Você deve dinheiro a ele. Mas é claro que você não fez um empréstimo junto ao arquiteto. Não se trata de uma operação de crédito.

Essa diferença (entre "direito de crédito" e "operação de crédito") foi explicada ontem na comissão do impeachment por Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da UERJ.

Tratava-se das célebres "pedaladas fiscais". Falando antes na mesma sessão, o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, já tinha exposto como a coisa funciona.

Assim como o dono da casa com o arquiteto, o governo faz um contrato de serviços com uma instituição financeira pública, como a Caixa Econômica. Nesse contrato, a Caixa se compromete a pagar coisas como Bolsa Família, ou seguro desemprego, para a população.

O governo deixa um dinheiro para que esses pagamentos se realizem. Acontece que nunca se sabe exatamente quanto deverá ser pago –pode haver mais desempregados do que se pensava, por exemplo. O banco paga todo mundo –mas o governo fica devendo aquilo que excedeu suas previsões.

Criou-se um "direito de crédito" junto ao governo, mas não se trata de "operação de crédito". Operações de crédito, estas sim, são proibidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Muito bem, continuou Ricardo Lodi. Essa é apenas a minha opinião. Pode-se achar que a pedalada é, sim, uma operação de crédito. Tal interpretação foi adotada pelo Tribunal de Contas da União.

Mas essa interpretação só foi adotada pelo TCU em fins de 2015, analisando as pedaladas de 2014. Antes, este o raciocínio, o governo não imaginava estar incorrendo em algo proibido.

E há mais. Ao longo de todo o ano de 2015, só houve uma pedalada: a do financiamento da safra agrícola, operado pelo Banco do Brasil. Só que, neste caso, a decisão não passa pela presidente da República. É feita diretamente pelo Ministério da Agricultura...

O dia era de exemplos corriqueiros. Nelson Barbosa deu outro.

Você vai ao supermercado, com uma lista de compras no bolso. Ligam de casa: em vez de um quilo de arroz, compre dois. O dinheiro que você tem na carteira não mudou, claro. Você reformula sua lista, mas não gasta um centavo a mais com isso.

Essa é a diferença, disse Barbosa, entre gestão do Orçamento (a lista de compras) e o limite financeiro (o quanto pode ser gasto).

O ministro da Fazenda contestava outro ponto do pedido de impeachment: o dos decretos de crédito suplementar. Do que se trata?

Tudo começa quando o Congresso aprova a Lei Orçamentária. Existem gastos financeiros (juros da dívida pública), gastos obrigatórios (Previdência, por exemplo), e gastos discricionários (aqueles com saúde, transportes ou o que quer que se queira).

Sobre esses gastos discricionários, o Executivo faz, em seguida, um decreto de contingenciamento. "Segura" parte do dinheiro, porque é aí que efetivamente pode economizar.

Estabelece, assim, o seu "limite financeiro". É o que se leva na carteira quando se vai ao supermercado. Isso não interfere, contudo, na "lista de compras".

Foram R$ 100 bilhões de créditos suplementares em 2015. Desse total, segundo Nelson Barbosa, só R$ 2,5 bilhões foram novidade com relação às previsões iniciais. É que houve aumento de receitas e arrecadação em alguns pontos muito específicos.

O governo pode ganhar um dinheiro a mais com multas, com taxas de inscrição para concursos em órgãos federais, coisas desse tipo, que eventualmente superaram as previsões. Recursos dessa natureza são legalmente destinados aos próprios órgãos de que se originaram: ganhos de multas vão para a polícia, taxas num concurso para a magistratura vão para o Judiciário...

Quanto ao limite geral dos gastos do governo, disse Barbosa, o governo "segurou" mais do que nunca as suas despesas em 2015: nunca foi tão alto o seu contingenciamento.

Barbosa citou ainda um mal-entendido. Os créditos suplementares são decididos por "decretos não numerados", o que dá ideia de que sejam secretos. São totalmente públicos. Deixaram de ter número porque, desde o governo FHC, só são numerados os que regulamentam leis e normas gerais. Depois do bombardeio de anteontem, os deputados pró-Dilma respiraram aliviados.


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