Folha de S. Paulo


Ilações odiosas

Por algum motivo, a situação do marido enganado parece cômica. Também a inocência, quando mal entendida, serve para provocar o riso.

A mocinha pura, na comédia de Molière, recebe uma vista masculina. Seu tutor, ao voltar para casa, pergunta preocupadíssimo o que aconteceu durante sua ausência.

"O gatinho morreu", responde Agnès, na "Escola de Maridos". É o bastante para deixar de cabelo em pé o velho Arnolphe, que pretende se casar com a pupila. "O que mais? O que ela está escondendo?" A menina continua seu relato; um jovem simpático tem aparecido e acabou por tomá-la nos braços.

"Ah, ele me tomou também a..." "O quê?" "Ahn... a... a..." Arnolphe sufoca, e quase pergunta: "a virgindade?" Agnes, por fim, confessa: "Me tomou a fita que o senhor me deu".

A plateia naturalmente ri do contraste que opõe a desconfiança catastróficas do velho à realidade cor-de-rosa da jovenzinha.

Pouca coisa se modifica, acho eu, quando passamos do quadro imaginado por Molière para o de "Otelo", tragédia de Shakespeare atualmente em cartaz no teatro Faap. A diretora Debora Dubois foi habilíssima em encenar a história do "Mouro de Veneza" como se estivesse a um milímetro da comédia, sem deixar que se desapareçam o sofrimento, o furor e a maldade a mover toda a maquinaria.

Como se sabe, é o maledicente Iago (Rafael Maia) quem conduz a trama. Caracterizado como uma espécie de Coringa das histórias em quadrinhos, o ator sabe atrair tanta repulsa quanto simpatia. Para esse Iago, ao menos, tudo é mesmo uma comédia, da mesma forma que o vilão do "Batman" não para de rir com suas próprias atrocidades.

Duas questões sempre surgem quando se fala em "Otelo". Por que, afinal, Iago quer tanto destruir a reputação de Desdêmona, levar seu marido ao desespero do ciúme, e ainda acabar com a vida de mais uns dois ou três personagens? E por que Otelo acredita nas calúnias de Iago?

Inútil tentar entender a mente de Iago, diz a psicanalista Germaine Greer ("Shakespeare", ed. Zahar, 1986). Para o crítico dinamarquês Georg Brandes (1842-1927), o problema é que Iago dá até explicações demais sobre seu comportamento, nos oito monólogos do texto.

Diz amar Desdêmona; acha que o rival Cássio, e também o próprio Otelo, o enganaram dormindo com sua mulher; odeia Otelo; ama Otelo.

No fundo, tantos motivos equivalem a nenhum. Brandes cita a frase do poeta Coleridge sobre as falas de Iago: "consistem na busca de motivos para uma malignidade sem motivo".

Quanto a Otelo, ele precisaria ser muito tolo para acreditar nas acusações sem fundamento de Iago.

A montagem em cartaz no teatro Faap investe, com acerto, numa leitura "moderna" da peça de Shakespeare, e acentua a questão racial.

Haveria algo de "errado" num casamento entre uma mocinha branca e um africano. A sensação ocupa a mente dos venezianos, e talvez a do próprio Otelo. Como é que Desdêmona poderia se manter fiel a um negro, com o belo Cássio ali por perto?

A questão se complica um pouco na montagem de Debora Dubois, porque um jovem negro belíssimo, de cabelo rastafári e porte de príncipe (Samuel de Assis) contracena com um Cássio bem menos sedutor (Cesar Figueiredo).

Se tivéssemos um Otelo feio, velho, e talvez impotente (como sugerem alguns críticos), certamente o seu ciúme seria mais plausível.

A encenação lida com sentimentos mais complexos. Por mais bonito e sexy que seja, Otelo carregará o carma do preconceito à sua volta. A música, por vezes invasiva, realça a origem africana do herói.

"Aconteça o que acontecer, nunca serei visto como um igual pelos brancos (e pelas brancas)", sente a vítima do preconceito de cor. Há também o inverso, acredito eu —e isso talvez explique o caso de Iago.

"Aconteça o que acontecer, sempre serei menos interessante fisicamente do que esse negro de escultura", pensa o branco inseguro.

Na verdade, Iago é o grande ciumento da peça -e sua mulher, Emília, sem dúvida é capaz de traí-lo. Tem de criar, tem de "inseminar" o ciúme na mente de Otelo —para que ambos se igualem, para que a superioridade do mouro desapareça.

Talvez eu tenha complicado demais. A peça em cartaz na Faap é grande entretenimento, e grande tragédia, mesmo que o humor, a graça, a juventude, nunca abandonem o excelente elenco.


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