Folha de S. Paulo


'Número Zero'

Mesmo quando não apresenta seus sintomas mais conhecidos, como perda da lucidez e da memória, a velhice pode fazer alguns sérios estragos do ponto de vista intelectual.

Proust fala de uma antiga senhora da alta sociedade, considerada muito espirituosa na juventude. A propósito de uma situação qualquer, fizera sucesso, certa vez, ao pronunciar a palavra "cultura" com sotaque alemão –"kkkulturr", exagerando as consoantes.

Trinta anos depois, em seu salão, a duquesa repetia a façanha, já fora do contexto original. "Kkkulturr, kkkulturr..." Proust imagina que um jovem, presenciando a cena pela primeira vez, haveria de comentar: "Mas que tonta, essa velhota!".

O sucesso da tirada, por engenhosa que fosse, havia corrompido sua autora. Infelizmente, acabo ficando com uma impressão parecida ao ler "Número Zero", o último romance de Umberto Eco.

O livro narra maquinações e delírios de um pequeno grupo de jornalistas medíocres, a quem um magnata suspeito encarrega de organizar um tabloide mais suspeito ainda.

A ideia poderia render um livro muito bom, se Umberto Eco não estivesse sofrendo dos males provocados pelo próprio sucesso. Achando-se mais divertido do que acreditavam seus admiradores, entregou-se a gracinhas sem saber como parar.

Voltado para um público popular, o jornal de "Número Zero" tem de oferecer notícias sobre celebridades, horóscopo e entretenimento. Alguém propõe uma seção de perguntas e respostas, de fundo humorístico.

"Por exemplo: por que bananas crescem em árvores? Porque se crescessem no chão logo seriam comidas por crocodilos."

É um jogo de salão; mas o autor encontra nisso material para preencher duas páginas de texto, encantado com o virtuosismo, bastante gratuito, dessa brincadeira.

Ei-lo imitando um relatório de médico-legista: "Na nuca, pouco distante da direita da linha mediana, ampla perfuração lacerada com diâmetro de quase 3 cm, com bordos evertidos sem infiltração hemorrágica..."

Muito bem. Mas quatro páginas disso? Não são quatro páginas, mas vários capítulos do livro se dedicam à exposição de uma elaborada teoria segundo a qual Mussolini não morreu em 1945, tendo secretamente fugido para a Argentina.

É a construção mental de um personagem paranoico, o jornalista Braggadocio (atenção: há alusões eruditas nesse nome próprio). Eco parece divertir-se com a história; o leitor, nem tanto.

O livro seria naturalmente um veículo para apontar os inúmeros defeitos do baixo jornalismo. Mas é um bocado tolo ver o chefe de Redação explicando a seus subordinados, como se fosse o próprio Umberto Eco num dia de trivialidade, que as previsões dos horóscopos devem ser genéricas o suficiente para que todos se reconheçam nelas.

Um traço interessante de "Número Zero" sobrevive, contudo, em meio a tamanha autocomplacência. Braggadocio, o jornalista, é fixado em teorias conspiratórias, organizações secretas e tramas em que tudo está ligado a tudo.

Mas na Redação também trabalha uma moça inteligente, sobre a qual caem suspeitas de ser um pouco autista.

Segundo o livro, os sinais de autismo podem ser percebidos quando uma pessoa se refere em voz alta a algo em que estava pensando –uma empresa aérea, digamos–, sem avisar ninguém do assunto em que estava concentrada.

"Não, essa não tem voo para Fortaleza", dirá a pessoa, julgando que seus ouvintes já sabiam que ela estava comparando companhias de avião.

Paranoia e autismo seriam os fenômenos psicológicos tematizados em "Número Zero".

Num caso, estamos sendo perseguidos por pessoas que sabem tudo a nosso respeito, e que sabem que sabemos aquilo que não deveríamos saber.

No outro caso, não sabemos que os outros ignoram tudo aquilo que sabemos. Falamos como se já soubessem.

Talvez seja esta a alienação típica do intelectual, do erudito: refere-se com familiaridade a nomes e coisas que o vulgo desconhece. Já o crítico literário, o semiólogo, o intérprete de signos, tem o costume conspiratório de considerar que tudo está interligado, é intencional, "significa".

A descrição do jornalismo feita por Umberto Eco é apenas uma graçola inconvincente. Mas seu livro ganha humanidade se pensarmos que o autor fazia também um retrato de si mesmo –com todas as fragilidades que esta última obra dá a entrever.


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