Folha de S. Paulo


Mundo ogro

Pela experiência que tenho em casa, nem mesmo os videogames (esqueça a televisão e o cinema) ocupam a maior parte do lazer entre os pré-adolescentes. Eles se divertem mesmo é com o YouTube.

Ignoro, na qualidade de pai, os vídeos de conteúdo sexual. O que me é permitido acessar, fora as filmagens esportivas, tem a comida como tema. E nunca pensei que pudesse ficar chocado com programas a esse respeito.

Começo pelos casos menos graves. O canal "Ana Maria Brogui", por exemplo, ensina os mais jovens a produzir na própria cozinha réplica de tudo o que as mães abominam em termos de alimentação.

Sonhos de Valsa caseiros, Kit Kats gigantes feitos com wafer comprado pronto e chocolate derretido e até uma Fanta Uva artesanal têm seus segredos revelados pelo simpático Caio Novaes, um careca barbado não tão gordo quanto poderia ser.

Um milhão e meio de seguidores aprendem a fazer esfirras folhadas de chocolate com M&Ms, ou o "melhor sanduíche de linguiça do mundo", que Novaes apresenta num didatismo sem escândalo.

Com esse canal, estamos ainda no mundo da realidade prática, se bem que no limite daquilo que se possa recomendar como inofensivo.

As coisas pioram muito com a turma do "Epic Meal Time", outro campeão de audiência do YouTube (quase 7 milhões de seguidores). Três ogros barbados, com cara de pouquíssimos amigos, oferecem verdadeiras aberrações culinárias.

A pizza de cheesebúrguer, por exemplo. É um edifício de vários andares, tendo por base um disco de pizza de um palmo de altura, recheado de carne moída, em cima do qual se monta uma camada de carne, bacon e queijo do tamanho de dois dicionários Aurélio.

Por cima, cheesebúrgueres inteiros, com fatias de salaminho e muito queijo para decorar. Cobre-se tudo com outra camada de massa. Num canto da tela, um contador de calorias vai girando em velocidade de foguete.

O mestre-cuca, um ostrogodo de olhos tristes, não parece precisar dos outros dois ajudantes, postados a seu lado como guarda-costas ou acólitos de algum culto radical. Quando a maçaroca está terminada, entende-se a razão de estarem ali: vieram para comer, não para conversar.

O espectador se inquieta a cada mordida furiosa. Será que tudo não se despedaça ao primeiro ataque?

Não. Provavelmente o alimento é tão compacto, tão grudento sob a força do próprio peso, que nem mesmo a pressão daquelas mandíbulas de animal poderia desintegrá-lo.

Em "Homens, Mulheres e Filhos", filme de Jason Reitman, há cenas assustadoras a respeito do que os adolescentes podem encontrar na internet. Pode-se acompanhar, por exemplo, a anorexia de uma jovem, fechada no quarto enquanto troca mensagens com suas companheiras de doença. O pai aparece com o jantar no prato. O computador ensina: cheire a comida, enquanto mastiga um salsão. Depois, jogue a refeição na privada.

De alguma forma, um canal como "Epic Meal Time" serve como complemento para o fenômeno da anorexia entre as adolescentes.

É a pornografia da comida, que se baseia, como a outra, no tabu e na repressão. Talvez tenha algo a ver com masculinidade também.

Antigamente, as mães insistiam para que os filhos comessem bastante. Hoje, preocupam-se com o inverso. O rebelde careca e tatuado desprezará qualquer preocupação estética ou metabólica. Sua macheza, como sempre, está em emancipar-se da mãe sem nunca perdê-la de vista; introjeta-a, a golpes de leite condensado e chocolate derretido.

Chegamos a "How to Basic". O canal do YouTube, teoricamente, também se propõe a ensinar uma receita. No começo, tudo é feito com método e minúcia. Mas logo o protagonista do filminho perde a paciência. Joga os ovos com casca e tudo na tigela; derruba quilos de farinha dentro da embalagem; usa um martelo para mexer a massa; termina quebrando a bancada e o fogão.

A revolta, aqui, é contra a ideia de que algo possa ser aprendido. Quebra-se o computador, ignora-se a receita e a fome. O ogro, antes positivo na sua capacidade de absorver o mundo, não pode mais com nada.

Faz uma sujeira indescritível na cozinha: talvez queira desintoxicar-se de tantos desejos, de tanta oferta, de tanta informação na internet. A anorexia surge como um protesto silencioso e suicida diante do mesmo problema; outros preferem o desperdício, o vandalismo, a hecatombe entre quatro paredes.


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