Folha de S. Paulo


Radicalismo é isso aí

Estamos bem servidos, no Brasil de hoje, de machismo, radicalização política e ignorância conservadora. Mas não custa relativizar um pouco as coisas.

Andei lendo sobre a Guerra Civil Espanhola, cujo início completará 80 anos em 2016. Em matéria de extremismo e imprudência política, a década de 1930 oferece ensinamentos de todos os lados.

Assim que foi proclamada a República, em 1931, os anticlericais festejaram o fato incendiando mais de uma centena de igrejas. Historiadores como Hugh Thomas tentam nos tranquilizar, dizendo que a prática era comum na Espanha desde o século 19.

Seja como for, já consistia em mau sinal a frase de um político republicano relativamente moderado, Manuel Azaña (1880-1940), a respeito de tais ataques. Seria preferível, declarou, ver queimadas todas as igrejas da Espanha a ter tocada a cabeça de um só republicano. Isso, em 1931.

Alguém falou em radicalismo? Eis um exemplo, nada sangrento, aliás: nomeado ministro da Justiça, contra suas convicções mais íntimas, o anarquista García Oliver (1901-1980) ordenou, como primeira medida de sua administração, que fossem queimados todos os processos criminais...

Enquanto isso, realizavam-se inúmeras coletivizações forçadas de indústrias, estabelecimentos comerciais e propriedades agrícolas. Sabendo de tais ameaças, o conde de Alba de Yeltes (1886-1965) chamou todos os trabalhadores de sua fazenda, organizou uma fila, selecionou seis infelizes e fuzilou-os à vista de todos –"para que fiquem avisados".

Em matéria de machismo, nada possivelmente supera os discursos de um militar aliado de Franco, que ocupou Sevilha mais ou menos no grito, e se dedicava toda noite a preleções radiofônicas, regadas a bastante vinho tinto.

"Nossos valentes legionários e soldados", dizia o general Queipo de Llano, "demonstraram aos vermelhos o que significa ser um homem de verdade. E mostraram isso também às mulheres deles! Isso se justifica totalmente, porque essas comunistas e anarquistas pregam o amor livre. Agora, pelo menos, saberão o que são homens de verdade, e não milicianos maricões."

Enquanto os aviões de Hitler bombardeavam cidades como a célebre Guernica, no País Basco, as forças de Stálin faziam seus horrores do outro lado; câmaras de tortura funcionavam sem descanso contra os suspeitos de trotskismo e de traição à "causa popular".

A memória das atrocidades e da insânia da Guerra Civil Espanhola haverá de ser reavivada nos próximos anos, mas o que me leva a escrever sobre o tema é o lançamento, pela editora É Realizações, de "Os Grandes Cemitérios sob a Lua", do francês Georges Bernanos (1888-1948).

Católico, monarquista, antissemita e com um filho alistado nas forças do fascismo, esse escritor de direita iria ter a coragem, em plena Guerra Civil, de denunciar a violência que partia do "seu" lado no conflito.

Morando na ilha de Palma de Maiorca desde 1934, Bernanos até que foi poupado de presenciar as maiores carnificinas da guerra. Mas sua repugnância não tem limites quando, por exemplo, vê uma velhota espanhola, daquelas católicas de preto, ser espancada quase até a morte por jovens fascistas. Tinha reclamado, conta Bernanos, do fato de que estavam tomando banho de mar sem roupa nenhuma.

Pessoas inofensivas da aldeia, farmacêuticos ou donos de quitanda, eram "levadas para passear" pelos fanáticos de Franco. Seus corpos eram deixados numa vala qualquer. Bernanos se escandaliza especialmente com os padres que fazem confissões às pressas dos suspeitos de republicanismo. "Um momentinho, daqui a pouco nós os entregamos ao batalhão de fuzilamento".

Parcela bem pequena do livro, entretanto, é dedicada a esse gênero de denúncias. O forte de Bernanos –o que o torna fascinante e difícil de ler– é uma retórica ao mesmo tempo furiosa e sem ódio, encaminhando raciocínios e invectivas para uma direção sempre imprevisível.

Os "imbecis" que ele combate não são aqueles que esperaríamos; o que ele quer da Igreja e do catolicismo parece tão extremo que corre o risco de se tornar ininteligível. A tradução ajuda pouco, aliás.

Mas "Os Grandes Cemitérios sob a Lua", a partir do próprio título, tem uma beleza única, feita de negrumes e súbitos clarões desolados; é a beleza, também, de uma atitude moral sempre solitária: a de saber condenar, sem medo, não os inimigos, mas os que supostamente estão em nosso próprio terreno.


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