Folha de S. Paulo


Faz frio, camarada

Por iniciativa da Umes (União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas), o stalinismo está de volta –pelo menos no cinema.

Saíram três DVDs de produção soviética, dois da década de 1930, e um feito em 1965 (o excelente e fino "O Fascismo de Todos os Dias"). O mais típico se chama "Tratoristas", uma comédia musical de 1939 dirigida por Ivan Pyryev, tendo por tema –imagine– a luta pela máxima produção de cereais numa fazenda coletiva.

Enquanto conduzem seus tratores pela monótona (e muito bem fotografada) paisagem ucraniana, todos os personagens cantam sem parar. Há problemas? Sim, claro que há.

Os tratores às vezes enguiçam; faltam mecânicos. Nem todos os chefes de equipe têm o entusiasmo de Mariana Bazhan, que por quebrar recordes de produtividade terminou virando uma celebridade nacional. Um gorducho preguiçoso dá mau exemplo à sua equipe.

Você pode estar pensando que tudo é uma chatice, mas o roteiro consegue mover-se com agilidade dentro do estreitíssimo traçado da ortodoxia partidária. Para evitar os galanteios de seus colegas, Mariana Bazhan inventa que está noiva do gorducho, e este esperançosamente aceita participar da farsa.

Intervém o representante do Partido. Não, ele não é nada autoritário. Quando se trata de repreender quem faz corpo mole, faz uso de piadas e discursos amistosos. São todos camaradas.

É nesse espírito que o dirigente procura dissuadir Mariana: vai casar justo com o pior tratorista? Mas você pensou bem? Mariana prolonga seu falso namoro. O problema é que chega à comunidade o par ideal. Mariana e o recém-chegado se apaixonam; como sair, agora, da enrascada daquele noivado de mentirinha? Não vou contar o final, se é que adianta silenciar sobre isso.

O mais interessante do filme está no subtexto político: desde o início, o Partido sabe o que é melhor para seus membros. Não forçou ninguém a nada –mas libera o casal apaixonado para que realize seus próprios desejos, os quais coincidem com os da coletividade...

Milhões de pequenos proprietários de terra já tinham sido assassinados por Stálin para que a bela tratorista vivesse o seu caso de amor. Naturalmente nada disso é mostrado no filme.

Desse massacre participou ativamente, segundo leio num site de cinema, o diretor dos outros dois filmes do pacote da Umes. Trata-se de Mikhail Romm, autor de "Lênin em Outubro" (1937) e do documentário sobre nazismo a que já me referi.

Ambos revelam surpreendente leveza, ironia e bom humor. A falsificação histórica dos eventos de 1917 fica bem patente, ainda que o DVD apresente uma cópia sem o destaque dado a Stálin na versão original.

Mesmo depois dessa depuração, persiste a tentativa de mostrar Trótski, Zinoviev e Kamenev como traidores e dedos-duros. Mesmo um inocente espectador em 1937 poderia estranhar: como é que Lênin, retratado como gênio político, manteria os três na direção do Partido até sua morte?

Seja como for, a caracterização de Lênin concilia magistralmente a ideia de que ele era infalível com a graça de mostrá-lo muito humano, quase "italianado" nos gestos e na indisciplina.

O bom humor dos ganhadores contamina o filme; os adversários são ridículos, mas não odiosos. A ironia por vezes se torna genuinamente artística, quando um militante segura o revólver em uma mão e, na outra, os sapatinhos do filho que irá nascer.

"Foi muito fria a última noite do capitalismo russo", diz uma legenda do filme. O frio, como sabemos, não acabou depois.

Para quem precisar de uma ducha de realidade, recomendo o primeiro volume dos "Contos de Kolimá", escritos por Varlam Chalámov (editora 34). De 1937 a 1951, o autor cumpriu penas de trabalho forçado na Sibéria. Era boa notícia quando o frio ficava só em 45 graus negativos. O cabelo grudava na madeira da cama.

As histórias são de uma secura e de uma brutalidade incomparável. Numa delas, acompanhamos com simpatia a sina de um capataz que está perdendo um jogo de baralho –até saber como ele consegue algo de valor para continuar apostando.

A brusca mudança de foco tem enorme efeito –embora retire da escrita de Chalámov a paciência reflexiva que faz dos relatos de Primo Levi sobre os campos nazistas a melhor obra do gênero. Mas "Contos de Kolimá", ainda mais quando o stalinismo continua com seus adeptos, é certamente indispensável.


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