Folha de S. Paulo


Poeta perde o laptop

Fale-se em poesia latina, e mesmo o leitor mais otimista dá um passo atrás. A probabilidade é topar com muito palavrório inexpugnável, como nos exemplos a seguir.

"Que nas aras flauta ebúrnea/sorva o canto das ânforas Migdônias". Opa! E que tal este começo de poema: "Não gostou tanto o Atrida do triunfo Dardânio/ ao cair o poder de Laomedonte..."?

Mas, assim como um apaixonado não se intimida diante das recusas de sua amada, um pouco de teimosia logo encontra sua recompensa. Continuemos.

Nem Ulisses se alegrou tanto, nem Fulano, nem Beltrana, explode o poeta, "quanto eu ao coletar prazeres nesta noite:/ e serei imortal se houver mais uma!"

Todo o peso das referências mitológicas e literárias, que atravancava nossa leitura dos primeiros versos, desaba diante do que é expressão de pura vida.

O poeta é Propércio, nascido por volta de 50 antes de Cristo, que pela primeira vez no Brasil aparece na tradução completa de suas "Elegias", por Guilherme Gontijo Flores (editora Autêntica).

Duzentas páginas de notas, no final do livro, esclarecem o significado de tantos dardânios e migdônias. Mas é possível acompanhar sem esse aparato, e com muito encanto, as aventuras e desventuras de Propércio junto a sua amada Cíntia.

A moça era arisca. Como em todo romance de amor, há cenas, rusgas, arrependimentos, devoções.

Um lindo exemplo pode ser encontrado na terceira elegia do livro 1. Depois de algumas referências à "Cefeia Andrômeda" e à "Edônide exaurida", encontramos Cíntia dormindo calmamente.

Propércio se aproxima. "Eu trazia meus passos bêbados de Baco", explica. "Então, sem ter perdido ainda meus sentidos,/ tentei acariciá-la sobre a cama." Algo o retém. "Não ousava perturbar o seu repouso."

Ele tira então a guirlanda de uvas que levava sobre a testa e coloca-a nos cabelos da amante adormecida. Arranja o penteado dela, deixa "um furtivo fruto" entre os seus dedos. Preocupa-se: "eu congelava crendo em vãos presságios,/ que um sonho te trouxesse insólitos temores".

E então a lua começa a brilhar, "a Lua cuidadosa em lentas luzes". Vale aproveitar o original na página ao lado: "luna moraturis sedula luminibus", para ver que a tradução de Guilherme Gontijo Flores reflete, e mesmo supera, a suavidade noturna e silenciosa do murmurar romano.

Cíntia acorda, e não está para brincadeiras. "Por fim a injúria devolveu-te ao nosso leito/ depois de te expulsarem de outra porta?/ Pois onde consumiste inteira a minha noite,/ Chegando exausto quando os astros somem? Safado!"

Outras vezes, é Propércio quem reclama. A jovem arranja outro amante. "O que esse é hoje, eu fora outrora", lamenta-se o poeta. "Que tu suportes, rechaçada, outras soberbas/ e chores, velha, os feitos que fizeste!"

Despede-se: "adeus umbrais em pranto por minhas palavras,/ porta que o punho em fúria não quebrou!" Sobrevêm viagens e separações.

Mas... "morra o primeiro que inventou a vela e a barca!" O poeta sofre; num verso moderníssimo, nota não ser espantoso "que eu seja um nada em tanto corpo". Sua desgraça será lembrada, diz, "quando eu for um parco nome em pouco mármore".

De repente, o reencontro. "Ó sou feliz! Ó noite radiante!" A embriaguez adquire tons baudelairianos: "Que palavras trocadas sob o fogo aceso,/ que imensa luta ao se apagar a luz!". O clima é o daquelas noites iluminadas pelo carvão em brasa, "soirs illuminés par le feu du charbon" do poeta francês.

Outra elegia lembra Edgar Allan Poe. Cíntia está morta –seu fantasma aparece. "Tinha os mesmos cabelos de quando a levaram"; "a água do Letes desbotou seu rosto".

Ela tem queixas a fazer. "Ninguém chorou o opaco dos meus olhos:/ clamasses ""e eu teria mais que um dia!" Seu corpo foi cremado. "Por que faltava nardo às minhas chamas?"

Morte e separação não extinguem o que nesses poemas vibra de vida, vida vivíssima. Numa elegia, Propércio se esquece momentaneamente da amada para desesperar-se com outra falta: perdeu as tabuinhas onde escrevia seus versos.

O desespero, em forma de anúncio público, poderia ser repetido hoje por quem perde o laptop ou o telefone portátil. "Se alguém me devolver, eu pagarei com ouro!/ Vai, meu escravo, e prega nalguma coluna:/ diz que teu dono mora no Esquilino."

Suas tabuinhas não se perderam; dois mil anos depois, chegaram ao Brasil, em linda tradução.


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