Folha de S. Paulo


Exército de formigas

Começou de forma meio esquisita a discussão sobre o direito ao consumo e porte de drogas no Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira. O uso de entorpecentes "é inerente à natureza humana", disse o primeiro orador da tarde.

Ele lembrou a música "Lucy in the Sky with Diamonds", dos Beatles, dizendo que a ouviu na noite da véspera, para diminuir sua ansiedade antes do julgamento. Depois dessa introdução meio "alternativa", Rafael Muneratti acertou o ritmo de seus argumentos.

Defendia um presidiário que foi apanhado guardando maconha dentro da cela. Seria legítimo puni-lo por causa disso? Seria constitucional? Não é seu direito consumir o que quiser, desde que sem levar perigo à sociedade?

Recorreu-se então ao Supremo Tribunal Federal, questionando a lei 11.343, de 2006. No texto, a posse de drogas para uso pessoal é reprimida.

Não com prisão, bem entendido. Mas quem carregar ou guardar entorpecentes para seu próprio consumo acaba devendo satisfações à Justiça. Recebe as penas de advertência, de prestação de serviços à comunidade ou de "comparecimento a curso educativo".

Ainda que relativamente brando, esse tipo de punição tem consequências indesejáveis. A porta de entrada para qualquer tratamento de usuários termina sendo a instituição policial. Proteger o dependente, prosseguiu Muneratti, não se confunde com puni-lo e condená-lo.

Representantes de várias entidades reforçaram essa tese. Embora não seja preso, o portador acaba sendo condenado -e perde a primariedade. Isso significa que suas penas, em caso de condenação posterior por outro crime, serão muito mais pesadas.

O usuário é estigmatizado. Terá mais medo, aliás, de procurar tratamento. Negros e jovens são especialmente visados nessa lei, disse um representante da Pastoral Carcerária.

Por que punir a vítima (o dependente), quando o verdadeiro algoz é o traficante? Sem dúvida, o usuário pode estar atentando contra a própria vida. Mas a lei não trata como criminoso quem tenta suicídio, por exemplo.
Seria inconstitucional, portanto, punir -mesmo com simples serviços à comunidade- um cidadão que tem direito de fazer com o próprio corpo, e com a própria saúde, o que bem entender. A saúde -ou a segurança- pública nada têm a ver com isso.

Tanto é assim que vários países -como a Argentina mais recentemente- já consideram inconstitucional qualquer punição a quem não seja traficante.

Do lado oposto, houve argumentos igualmente fortes -e outros nem tanto. Pelo Ministério Público, Rodrigo Janot enfatizou que o problema em discussão não era o consumo de drogas, mas sim a posse, o transporte da substância, ainda que em pequenas quantidades.

Fala-se em maconha, lembrou ele; mas e o crack? Quem ignora que o tráfico é feito em pequenas quantidades? Criaremos um "exército de formigas" se eliminarmos a vigilância policial em casos assim.

Pela Associação dos Delegados de Polícia, um orador bastante confuso fez a previsão: dos 7 milhões de dependentes que há no Brasil, passaremos a 30 milhões! Citou um bizarro projeto de lei que prevê acompanhantes individuais para quem for identificado como usuário de drogas.

Com mais brilho, o advogado David Azevedo, da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, trouxe a surpresa da tarde. O tal artigo que se quer considerar inconstitucional, porque criminaliza a posse de drogas, não criminaliza nada! Usaram um rótulo falso! O texto fala em "penas" para quem guardar drogas, mas na verdade não há pena nenhuma. Nada acontece com quem não prestar serviços à comunidade, por exemplo.

Nem se diga, prosseguiu, que a pessoa "condenada" nesses casos terá penas maiores, como reincidente, em crimes que cometa depois. Se os tribunais julgam assim, eles estão errados, bradou Azevedo.

Como argumentar, ademais, que o Estado não deve intervir na integridade do indivíduo? Seria inconstitucional a lei que obriga o cinto de segurança ou o capacete do motociclista?

Com essas e outras perguntas no ar, não houve tempo para o primeiro voto sobre o tema, do ministro Gilmar Mendes. O julgamento prossegue hoje.


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