Folha de S. Paulo


Em preto e branco

De todos os mestres da pintura moderna, nenhum esteve tão próximo do mundo dos sonhos quanto Marc Chagall (1887-1985).

Não só porque nos seus quadros noivas e vacas flutuam sobre as casas de uma aldeia, ou porque as flores de um vaso possam explodir como fogos de artifício e subir para além da Torre Eiffel.

Certamente, a gravidade não tem força no mundo que sonhamos, e os contornos de uma coisa, a dimensão exata de um rosto, a proporção de uma mesa ou de uma fruta podem se alterar, quando a mente adormece e "mistura memória com desejo", para lembrar o verso de T.S. Eliot (1888-1965).

Mas, nos meus sonhos pelo menos, é mais comum cair do que voar; a fantasia é fraca. Violinos verdes, buquês na lua, galos dentro d'água não são minha especialidade onírica.

Antes, estou às voltas com provas de matemática, carros que enguiçam, revisões de uma tese de doutorado que nunca irei entregar. E depois dizem que o superego de vez em quando dá um descanso pra gente.

De qualquer modo, não é preciso ter os sonhos de Chagall para perceber que ele sonha. Sem que relógios alados e rabinos voadores nos visitem enquanto dormimos, as cores do pintor russo já bastam para reconhecermos o que em seus quadros há de alucinado e de impossível.

É como se as cores de Chagall não viessem da luz do sol. Por mais luminosas que sejam, foram tiradas de dentro do coração da noite.

Ou talvez, para ser mais exato, é como se o azul, o verde, o laranja daqueles quadros fosse revelado pela luz fortíssima de um refletor de teatro. São cores de um cenário de balé, e não por acaso escolheram o pintor para fazer a decoração do teto da Ópera de Paris.

Um outro Chagall pode ser visto, entretanto, em São Paulo. Ficam expostas até dia 23 de junho, no Centro Cultural Correios, as gravuras que ele fez para ilustrar as fábulas de La Fontaine (1621-95).

Em tese, o mundo dos quadros de Chagall poderia harmonizar-se com os animais falantes do poeta francês. Mas, pensando bem, nada mais diferente do que esses dois artistas.

A fantasia de Chagall, buscando ser livre e espontânea como a arte popular, está no extremo oposto da clássica contenção da linguagem de La Fontaine –um autor para quem as coisas são o que são, e em cujas histórias os tolos pagam o preço de seus enganos.

A rã quer ser tão poderosa quanto um boi; enche-se de ar até explodir. O cordeiro quer discutir com o lobo; tem razão em seus argumentos –mas é devorado.

Uma gatinha transformou-se em mulher; por mais educada que seja, não se contém quando vê um camundongo à sua frente.

Foi o "marchand" Ambroise Vollard quem encomendou a Chagall, em finais da década de 1920, uma série de pinturas a guache ilustrando as fábulas de La Fontaine.

Importante amostra desse trabalho pode ser encontrada num livro da Editora Estação Liberdade, publicado em 2004, com tradução dos poemas feita por Mário Laranjeira (R$ 57, 144 págs.).

Página depois de página, o que vemos é uma explosão de cores; o leão enorme, atormentado por um inseto, traz no dorso contorcido galáxias de amarelo, de rosa e de azul-claro, cor de giz. O urso que avança sobre um caçador caído tem a pelagem quase roxa, e o rosto do boi desafiado pela rã parece ser feito com a bandeira do Brasil.

O livro da Estação Liberdade reproduz as pinturas que foi possível recuperar entre colecionadores; boa parte dessa obra se dispersou. Na mostra dos Correios, aparece um número bem maior de gravuras. Constituem a versão refeita, por Chagall, em preto e branco, das originais.

Alguns poucos textos de La Fontaine aparecem "recriados", nem sempre com exatidão, por Luciano Oze, também responsável pela trilha sonora instalada na exposição.

O efeito acaba sendo notável. Sem cores, sem onirismo, sem pedrarias, as imagens de Chagall convergem para a crueldade de La Fontaine.

Os animais, embora às vezes doces em sua fisionomia e graciosos nas caudas e na inclinação dos chifres, recuperam uma verdade paleolítica.

Com exceção de uma única imagem (a de um pastor à beira-mar), o sol está ausente dessas gravuras; isso, como vimos, também acontece nos quadros de Chagall.

Mas, sem cor, é a noite irracional do entreguerras, com seus dentes, suas ameaças e seus monstros, que parece postar-se à nossa espera.


Endereço da página: