Folha de S. Paulo


Medos brasileiros

Os primeiros romances de terror, ou pelo menos os que constituem o chamado "gênero gótico", surgiram na Inglaterra do século 18. Casarões assombrados, maldições familiares e mocinhas ameaçadas eram componentes obrigatórios das narrativas.

Ainda que o primeiro exemplar do estilo ("O Castelo de Otranto", de Horace Walpole) tenha sido publicado em 1764, alguns críticos literários identificam a psicologia das histórias góticas a um outro tipo de terror –aquele que nasceria dos excessos da Revolução Francesa.

Um arrepio gelado já percorria a espinha de toda a Europa, antes mesmo que a guilhotina de Robespierre começasse a funcionar.

A riqueza herdada, as tradições da grande propriedade rural, os vetustos brasões da nobreza –tudo ia se desfazendo com o progresso industrial, o avanço das luzes e o reequilíbrio do poder em benefício da elite urbana.

A ruína, os castelos, os antepassados: para o público de classe média, era divertido consumir, como terror ficcional, uma ameaça que não o atingia diretamente.

"Casa Grande", filme de Fellipe Barbosa atualmente em cartaz no Espaço Itaú de Cinema e no Reserva Cultural, talvez possa ser visto como exemplo de certo "gótico brasileiro", ao lado de "O Invasor" (2001), de Beto Brant, e "O Som ao Redor" (2012), de Kleber Mendonça Filho.

Beto Brant (com Marçal Aquino) tematizava nossos medos imaginando a figura de um bandido que começa a morar numa casa burguesa; como a situação é obviamente implausível, o significado alegórico da história se tornava muito claro.

"O Som ao Redor" acumulava, em indícios de muita sutileza, uma violência que irromperia no final, como implacável vingança de classe.

Naquele bairro de classe média alta do Recife, tudo era falsamente pacífico e falsamente ameaçador –até o momento em que a ameaça se concretiza realmente.

A primeira cena de "Casa Grande" dá destaque, de forma bem mais intensa do que "O Invasor" ou "O Som ao Redor", ao cenário da história. Não se trata, certamente, de um castelo gótico, mas de uma mansão de três andares no Rio.

A possibilidade de invasão está colocada o tempo todo. Existem luzes de alarme até mesmo na escada que leva aos quartos de dormir.

A filha adolescente do casal entra no closet do pai para pegar dinheiro. A própria dona da casa irá entregar-se à conhecida prática de invadir as "dependências de empregada" em busca de irregularidades e evidências.

Dito isso, um dos muitos defeitos de "Casa Grande" está na sua quase completa ausência de tensão. Hugo (Marcello Novaes, em bom trabalho) enriqueceu graças a investimentos na Bolsa de Valores –e agora está quase falido. Coitado: apostou nos papéis de Eike Batista.

Tenta esconder do filho adolescente (Thales Cavalcanti) a sua decadência financeira. Os empregados da casa vão sendo despedidos, entretanto –e, aprendendo agora a ir de ônibus para a escola, o jovem começa a namorar uma menina mestiça (Bruna Amaya).

O problema de "Casa Grande" –à parte a falta de carisma dos personagens e o roteiro arrastadinho, sem foco– talvez possa ser resumido rapidamente. Em vez de brincar com o medo alheio, como faziam os escritores góticos, "Casa Grande" é testemunho de um medo real.

O medo é tão grande, todavia, que ameaças que pesam sobre a família são diminuídas o tempo todo. Não será negra, mas levemente morena a namoradinha do herdeiro. Em risco de falência, o pai de família desliga a jacuzzi da piscina.

Há uma curiosa indiferença dos personagens, e isso seria em tese um recurso para não mostrar a classe alta brasileira sob uma luz caricata. Mas, ao fugir do caricato, o filme paga o preço de cair no irrealismo.

Pule a próxima frase se não quiser conhecer o final do filme. Como imaginar que um garoto da zona sul carioca se instale confortavelmente numa favela –sem drogas nem milícias, só amor e forró?

A história se organiza em eufemismos, na verdade, para outro tipo de inquietações. A baixa dos juros nos últimos anos, a nova legislação das empregadas domésticas, a ascensão dos mais pobres ao universo do consumo criam mal-estar, consciente ou não, no "andar de cima".

"Casa Grande" resulta dessa emoção, mas é incapaz de enfrentá-la. Seja como for, o problema não dura muito. Com a inflação em baixa e os juros em alta, aposto que muita revolta se aplaca.


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