Folha de S. Paulo


Histórias da vovozinha

Comentei, na semana passada, a fotografia da família Bayer. São pequenos pecuaristas do Rio Grande do Sul, que fizeram questão de aparecer na caixinha do leite desnatado que produzem. Parodiando o antigo lema petista do "sem medo de ser feliz", aquela imagem poderia simbolizar o "sem medo de ser empresário".

Há algo de tocante, eu dizia, em ostentar o próprio nome na fachada de uma loja, ou aparecer em pessoa nos anúncios da sua companhia na TV; é como se o comerciante vivesse numa época anterior às patrulhas ideológicas, ou melhor, anterior às teorias de Marx sobre a apropriação privada da riqueza social.

Os tempos mudaram, e o empresário surge, hoje em dia, mais como vítima do que como beneficiário do sistema: ele é o cidadão que paga impostos, que se esfalfa, que se sacrifica, que se vê injustiçado e explorado pelo governo.

Se isto é verdade, no mundo dos funcionários parece estar em falta a narrativa correspondente. O operário explorado, protagonista de um épico processo de emancipação histórica, sem dúvida foi esquecido em alguma virada infeliz dos partidos de esquerda nas últimas décadas.

Pois bem. O mais surpreendente, nesse processo, não é a revalorização do empresário. É que, em algumas campanhas de publicidade, a ideologia deu um passo à frente.

Em vez de prestigiar esta ou aquela família de verdade de pecuaristas ou fabricantes de móveis, há anúncios que inventam tradições familiares que nunca existiram de fato.

Leio que, no meio publicitário, a prática leva o nome de "storytelling". Uma fábrica de sorvetes, aliás excelentes, andou enfrentando problemas com isso. Noticia-se que, nas embalagens do picolé, havia referências a um certo vovô Vittorio, que na longínqua Itália já se deliciava criando sorvete artesanal.

Ma non era vero, e nem sei se ben trovato. O avô do atual dono, revelou-se mais tarde, trabalhava com paisagismo e jardinagem.

Há uns dois ou três anos, uma fábrica de panetones também retornava aos tempos de Gepeto e de Pinóquio para mostrar um simpático senhor de bigode branco, produzindo "cookies" com as próprias mãos.

Pensando bem, a "contação de história" não muda muita coisa. Há exagero palpável quando se cita abertamente o nome de um antepassado fictício como iniciador de uma tradição. Mas é comum que, sem palavras, o mesmo truque apareça em muitos outros anúncios.

Lembro-me de um antigo filme publicitário em que uma indústria de queijo ralado se apresentava como uma verdadeira oficina de Papai Noel, com o velhinho de sempre pincelando carinhosamente de azul a casca de imensos parmesãos.

Nada era dito –mas sabíamos que a cena estava além da verdade e da mentira; poetizava-se o produto, vendia-se uma evocação. Ou seja, se você experimentar este biscoito ou este queijo, sentirá um gosto comparável ao do produto artesanal.

A qualidade de uma coisa interessa menos do que seu significado; a camiseta da marca Y não é tão diferente assim da outra, da grife Z. Mas uma está associada à vida esportiva e radical, enquanto a outra circula entre as arcadas clássicas de uma cidade europeia.

Tudo se torna tão cercado de imaginações que a coisa em si, a roupa, a bolsa ou o sapato, perde consistência: compramos, antes de tudo, o fato de que tal objeto é usado por George Clooney ou Gisele Bündchen.

A questão é que, conforme o caso, essa consistência tem de ser recuperada: o biscoito tem de comprovar sua "biscoitice", o queijo tem de ser mais "queijento" do que nunca.

Intervém, assim, a ficção familiar: entram em cena o vovô, a oficininha, a granja, a fazendola, como se uma gigantesca fábrica na Fernão Dias ou na Dutra pudesse retornar ao tempo idílico das colheres de pau, dos fogareiros e das janelas cor de âmbar. Tempo em que o queijo era apenas queijo e o sorvete, apenas sorvete.

Moral da história: o tal pequeno empresário, esmagado pelos impostos, que reclama da corrupção (ao lado de outros setores da classe média e da juventude) talvez não tenha sorte diversa daquela do velho operário marxista.

O futuro, feito de investimentos anônimos e organizações sem rosto (mas o anonimato parece ser característica exclusiva do Estado), tende a ser impiedoso para com os vovôs, as famílias, as criações artesanais.

Daí, em parte, o amargor ideológico –enquanto a publicidade se torna mais doce do que nunca.


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