Folha de S. Paulo


Que dupla!

No comecinho, até que eu estava achando normal. Mas logo a estranheza apareceu. Por que dois ministros de uma vez?

Era a noite de domingo, e José Eduardo Cardozo apareceu na televisão ao lado de Miguel Rossetto para falar a respeito das manifestações daquele dia em todo o país.

Queriam, talvez, mostrar-se apenas sérios e graves. Mas em poucos minutos deixaram transparecer o que era puro mau humor. Cardozo estava de cenho carregado, elogiando o clima democrático do país como se estivesse dando uma bronca.

Foi o mais benigno dos dois, dizendo que "o Brasil está muito longe de golpismos". Obviamente, não é isso o que acha a maioria dos petistas. Desde o mensalão, pelo menos, a principal linha de defesa de Lula e do PT tem sido a de dizer que os escândalos do governo foram criados por uma conspiração burguesa.

Eis que o ministro número um termina suas declarações. Aparece o ministro número dois –para dizer, entre outras coisas, o contrário do que se acabava de ouvir.

Miguel Rossetto parecia ter sido acordado no meio de uma sesta prolongada, sem vontade de dar satisfações a ninguém.

As manifestações de domingo constituíam, disse, obra dos que não votaram na presidente Dilma Rousseff. Considerando-as legítimas, acrescentou: "O que deve ser condenado é o golpismo, o impeachment infundado..."

E havia sinais disso nas manifestações, acrescentou o ministro. Com efeito: citou gente que desejava o fim do Supremo Tribunal Federal.

O que explica a aparição de dois representantes do governo ao mesmo tempo? Havia, como disseram com acuidade na Globo News, um recado duplo –Cardozo falando para a sociedade em geral, e Rossetto para o público interno petista.

A divisão de tarefas era real, mas ainda assim um bocado estranha. Não havia ninguém com coragem de assumir sozinho a tarefa? Terá sido tão acesa a discussão interna no gabinete dilmista que a solução foi apresentar duas versões distintas para os fatos de domingo?

Outra pergunta. Estaremos assistindo à cisão entre uma linha dura petista ("melhor que o ajuste recaia sobre faixas de renda que não nos apoiam mesmo") e um setor disposto a ceder ao mercado e ao PMDB?

De qualquer modo, se tivéssemos uma personalidade política mais hábil e mais forte na presidência, não haveria necessidade de nenhum representante. O próprio chefe de governo apareceria diante das câmeras e daria o seu recado.

Talvez ninguém estivesse num bom estado de nervos naquela noite. Seja como for, Dilma deu uma entrevista na segunda-feira, mostrando-se espontânea e simpática, na medida do possível.

Retomou a defesa da democracia, lembrando o quanto sua geração lutou para que todos pudessem se manifestar nas ruas. Com certa malícia, brincou com a atual mania de seus críticos: a de pedir que ela reconheça seus erros, como se estivesse "num confessionário".

Que seja. Seria pedir pouco, na verdade, que Dilma faça um "mea culpa". Não será isso o que irá satisfazer os manifestantes de domingo.

Um pacote contra a corrupção? Um projeto de reforma política? A própria Dilma afirmou que leis desse tipo demoram muito para ser elaboradas, e ninguém parece saber tão bem assim quais os ingredientes dessa vacina universal.

Digam o que disserem Rossetto, Cardozo ou Dilma, o público a ser aplacado não quer ouvi-los: sai para às janelas fazer seu panelaço.

O que querem os manifestantes? Ao contrário do que acontecia em junho de 2013, quando queriam muitas coisas, atualmente me parece claro que eles querem apenas uma: a saída de Dilma e do PT.

Não há condições para isso, e evidentemente nem Dilma, nem o PT estarão dispostos a ceder.

Desse modo, a única resposta possível do governo será, na prática, a de dar resposta nenhuma. Esperar simplesmente que o movimento arrefeça, que algumas punições distraiam as atenções gerais, que dentro de um ano a economia melhore, e que nenhuma revelação mais grave venha a aparecer.

Ainda que seja preocupante a impopularidade de Dilma, o governismo continua confiante: ela foi eleita, seus opositores afinal de contas são minoria, os protestos são inconformismo diante da derrota de Aécio, e seria vão tentar o aplauso da classe média paulistana. Será realista essa avaliação? É o que veremos.


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