Folha de S. Paulo


Fantasmas ao norte

O véu que cobre o rosto da noiva, diz o escritor Diógenes Moura, tem muita semelhança com a imagem fotográfica. É filtro e película; deixa passar a luz, mas cria distância entre o olhar e a modelo.

Segue os contornos da fisionomia, mas acrescenta à figura um ar fantasmagórico.

O véu sugere, ademais, tudo aquilo que pode se perder numa fotografia: a face da moça, entrevista pela névoa branca de tecido, está no limite do esquecimento e da desaparição.

Em pouco tempo ela deixará de ser noiva para ser mulher. A câmera captou aquele instante, querendo romper o mistério, sem tocá-lo de fato. A imagem, assim como o véu, restará talvez guardada num fundo de gaveta.

Algumas fotos de noivas, bem antigas, reaparecem, entretanto, nestes dias. Estão na mostra "A Arte da Lembrança - A Saudade na Fotografia Brasileira", que Diógenes Moura organizou para o Itaú Cultural.

Pequenina, escura, seríssima, uma noiva baiana é fotografada por Aracy Esteve Gomes em 1958. Ela se destaca contra o negror de uma porta altíssima, e sua expressão é mais de despedida do que de encontro.

A imagem, triste a mais não poder, combina com outra foto, mais graciosa e viva. Vemos uma jovem baixinha, de ar esperto, toda de branco, com uma bolsa da mesma cor que parece de brinquedo, à frente de uma fila de cinema.

Ela consulta o relógio de pulso, sem aparentar muita angústia; um leve sorriso no rosto sugere que, talvez, até saiba estar sendo fotografada. É do austríaco Kurt Klagsbrunn esse instantâneo, tirado na Cinelândia em 1946.

À imagem dessa espera, entre discreta e espevitada, acrescenta-se outra foto, agora de Luciano Andrade. Também de roupa clara, mas vista de perfil como uma estátua, uma mulher magra estaca, encostada numa árvore, à frente da infinidade do mar. "Fazendo tricô no Porto da Barra" é o título dessa fotografia de 1982, tirada em Salvador.

A mulher trabalha de pé, com o novelo equilibrado na cabeça, como que desfiando o tempo.

"Saudade na Fotografia Brasileira" talvez seja um título fácil demais, ou subjetivo em excesso, para o que vemos na exposição. No casos dessas três mulheres, sem dúvida o que parece estar em jogo é a espera, e (em decorrência disso) uma sensação de ausência.

Mas a menina que confere a hora do seu encontro marcado no cinema não está necessariamente "saudosa" do namoradinho.

Sem dúvida, é o organizador da mostra que, reunindo fotos não apenas do Rio de Janeiro, mas sobretudo do Recife, de Salvador e outras cidades do Nordeste, revela traços fortes de sua nostalgia pessoal.

Seja como for, Moura aponta em vários momentos para um paradoxo essencial da fotografia. Destinada a fixar, no papel, o instante presente, toda imagem fotográfica acaba sendo o registro do que desapareceu, do que já não está mais lá.

A ideia surge com clareza em algumas sequências curiosas de fotos em que pedestres simplesmente passam pela calçada, para desaparecer no retrato seguinte, tirado poucos segundos depois.

Uma mesma mulher de vestido estampado conversa com alguém, no Recife de 1960; o fotógrafo Wilson Carneiro da Cunha irá então mostrá-la sozinha, atravessando a rua, sem que tenhamos sequer podido ver direito o seu rosto.

Passagens ainda mais rápidas são registradas por Voltaire Fraga, numa cena noturna da rua Chile, em Salvador, ano de 1945. Os anúncios luminosos e os trilhos de bonde não poderiam ser mais nítidos, recortados contra o fundo escuro.

É preciso esperar um pouco para perceber que o filme também se impregnou, muito de leve, das sombras de dezenas, talvez centenas de passantes. A longa exposição da câmera privilegia a luz das lojas; já os homens e mulheres se dissolvem, apressados, numa insubsistência de algodão e linho branco.

De modo mais explícito, há duas fotos de um furgão cinza, parado na rua. A primeira foto não diz muita coisa, exceto como testemunho da relativa tranquilidade do tráfego urbano aí por volta de 1950. O porta-malas se abre, contudo, na foto seguinte: alguns caixões de defunto baratos se empilham ali, prontos para o fornecimento programado, na porta de uma loja de província.

Antes e depois. Um sorriso morto para a foto, e o lambe-lambe encerra seu trabalho, coveiro sem matéria.


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