Folha de S. Paulo


Que tal um racionamento?

Existem aqueles que começam a refeição pelo que houver de pior –o fígado, o nabo, o espinafre–, reservando para o final aquilo de que gostam mais.

Outros têm a atitude oposta. São os que começam com a cereja do bolo, e adiam a hora de fazer a lição de casa.

Qual das duas atitudes é a mais racional? Não sei, acho que a lógica tende a variar conforme o exemplo escolhido.

Pode ser mais inteligente começar com a cereja: não sabemos se um incêndio, uma inundação, um confisco geral de sobremesas irá ocorrer nos próximos três minutos, levando de cambulhada meu bolo, meu pratinho, meu garfo e minha cereja. Melhor garantir, antes da catástrofe, o máximo de prazer possível.

Pode ser mais racional começar com os sacrifícios: faço a lição de casa agora, fico livre. Pode ser má ideia: corro para fazer uma cirurgia dificílima, mas não urgente, e se esperasse alguns meses entraria no mercado o novo remédio que a torna dispensável.

Na questão do racionamento da água, as duas atitudes estão em confronto.

Se eu fosse o governador Alckmin, faria mais ou menos o que ele está fazendo: falar do assunto o mínimo possível, esperar que as chuvas cheguem, e nem morto iniciar o racionamento antes que a situação se mostre incontornável.

Mas compreendo bem a pressa dos adeptos do racionamento. Acho que há vários motivos (psicológicos, nada sei dos técnicos) para pressionar em favor de sua adoção imediata.

O primeiro motivo fala alto ao coração dos jornalistas. Se algo tem de acontecer, que aconteça logo. A espera é insuportável, é o pesadelo da manchete em branco.

Claro que não é preciso ser jornalista para sofrer com isso. Na linha de frente de batalha, o comandante inspeciona os soldados. "Precisamos de um voluntário", diz ele. "Alguém se apresenta?".

Não, ninguém. O silêncio pesa. Olho de relance para os recrutas ao meu lado. Alguém precisa se mover. Impossível continuar assim.

Pronto! Está decidido: eu avanço para a morte. Não por heroísmo, mas por impaciência. Ou, mais exatamente, pelo simples horror ao vazio.

Que venha o racionamento! Preencherá as cisternas de uma aflição crônica, fria, impessoal e lenta, sobre a qual nos debruçamos.

Tentamos ouvir alguma coisa. Distingue-se apenas, nascendo de um fundo obscuro e oco, o brilho rápido de um sorriso, de uma armação metálica de óculos. Que foi, que era aquilo? O amável espectro se esvai nas profundezas secas: seu nome, ocorre-me agora, é Geraldo Alckmin.

O "picolé de chuchu" exaspera qualquer jornalista, pelo sangue frio, e pela ausência de assunto. O governador aguarda, apenas. É impossível transformá-lo em notícia.

Que venha o racionamento, repetimos –e agora não só pela necessidade de um fato, mas pelo fascínio que todo sacrifício, por si mesmo, impõe.

Há certamente uma intensificação do sentimento coletivo nessas situações extremas. Quando os nazistas bombardearam a cidade de Londres, o rei George 6º manteve-se firme no Palácio de Buckingham. Não poderia faltar com o dever de solidariedade junto aos seus súditos.

Quantos governantes, hoje em dia, seguiriam esse comportamento?

Mas o ponto não é esse. Se os ingleses mantiveram alto o seu estado de espírito naqueles dias, é porque também viviam a sensação de participar de um destino comum. Que tal um racionamento de água?

Conclusão bizarra: o socialismo, a igualdade, a solidariedade nacional (ao estilo cubano) talvez precisem mesmo de uma boa dose de escassez.

Seja como for, agora a falta de água atinge injustamente os cidadãos. No meu bairro, não há racionamento à vista; em outros lugares, tudo está seco há muito tempo.

Para corrigir esse desequilíbrio, o racionamento deveria ser feito desde já. Contudo, de um ponto de vista menos "justiceiro", não há razão para medidas extremas, se muitos ainda podem passar pela crise em brancas nuvens.

Que São Pedro cuide do resto; qualquer intervenção governamental tende a dar errado. É a lição liberal, levada a seus extremos.

Resposta simétrica: se a natureza não ajuda, o governo não pode se omitir. É a lição socialista: "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

São duas atitudes mentais, claro; não chego sequer a chamá-las de ideológicas. O debate real teria de ter acontecido antes –sobre investimentos do Estado e coisas parecidas. O prato da escassez, agora, está servido: quem quiser, que comece pelo espinafre, e acabe com o chuchu.


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