Folha de S. Paulo


Arapucas por toda parte

Começou com as encomendas de livros. Depois vieram móveis de tamanho médio (mesa de centro, aparador) e vários tipos de eletrodoméstico (de coifa e geladeira até miniventiladores e luzes de emergência).

Passei então aos sapatos, que contra todas as expectativas deram certíssimo. Tornei-me assim um consumidor de internet quase integral, hesitando apenas na aquisição de roupas.

O resultado é que não paro de receber anúncios por e-mail. Nestes dias, seguem o seguinte formato: "Aproveite! Esta é a última promoção do ano!".

Meu impulso foi o de correr para o site; demorou um pouco para cair a ficha. Claro que aquela era a última promoção do ano: faltavam poucos dias para o Réveillon.

O calendário não dizia outra coisa. Não havia motivo para sair correndo. Pois é claro que, em janeiro, começarão as primeiras ofertas de 2015.

O escritor e empresário suíço Rolf Dobelli comenta esse tipo de armadilha mental, ligada à miragem da "última chance" (e sua contrapartida emocional, o medo do arrependimento).

Trata-se apenas de um pequeno exemplo, tirado dos cem capítulos que compõem "A Arte de Pensar Claramente", que sai agora em versão ampliada pela editora Objetiva.

Antes de se tornar empresário e divulgador do pensamento lógico, Dobelli interessou-se por teoria literária e filosofia, tendo escrito uma tese sobre Jacques Derrida. Seu contato com as circunvoluções do pensamento "desconstrucionista" valeu, digamos, como uma vacina intelectual.

Hoje em dia, Dobelli emprega seu grande talento como expositor de ideias para ensinar o leitor, não digo a pensar melhor, mas pelo menos a se precaver contra conclusões traiçoeiras.

Muita coisa do livro é conhecida, e para meu colega Hélio Schwartsman, adepto desses jogos mentais, talvez "A Arte de Pensar Claramente" não passe de um manual de como chover no molhado.

Para mim, entretanto, vários capítulos traziam revelações interessantes. Eis um exemplo: "Você se senta à mesa de reunião do conselho diretor de uma empresa de varejo com mil lojas", começa Dobelli.

"Metade das lojas está em grandes cidades; a outra metade, em áreas rurais. Uma consultoria pesquisou as ocorrências de furto nas lojas e está apresentando os resultados. Projetados no telão, estão os nomes das cem filiais com maior índice de furtos em relação às vendas."

Os dados são indiscutíveis. "As filiais com maior índice de furtos encontram-se principalmente em áreas rurais." A direção da rede varejista toma uma iniciativa de bom senso: instalar câmeras de segurança nas lojas do interior. "Quero ver esses caipiras roubarem a gente de novo! Todos concordam?"

Dobelli recomenda que alguém faça outra pergunta. "Quais seriam as cem filiais com menor incidência de furtos?" Uma olhada nas tabelas, e surge a surpresa. As lojas com menor incidência de furtos também estão nas áreas rurais!

Como assim? O fator decisivo, explica Dobelli, não é a localização da loja. "O importante é o tamanho dela. No interior, as lojas tendem a ser menores, o que significa que um único incidente influencia muito mais o índice de furtos. Por isso, a variação entre essas lojas é grande, muito maior do que nas filiais de grande porte nas cidades."

Vemos aqui o que o autor chama de "lei dos pequenos números", e em alguns parágrafos a mais a questão fica explicada do modo mais simples possível.

A possibilidade de cairmos em esparrelas matemáticas ou "cognitivas" é muito grande, embora certamente não chegue a uma centena (como o marketing do autor tenta sugerir). Quem tentar seguir honestamente os capítulos de Dobelli, aceitando os pequenos desafios que ele propõe, tem sério risco de cair em autodepreciação intelectual.

Risco? O tema é dos melhores. Um bom capítulo mostra as diferenças entre risco e incerteza –e de que modo fazemos previsões equivocadas confundindo uma coisa e outra.

Se me disserem que tenho 30% de chance de morrer de câncer, a afirmativa é plausível. E totalmente diferente, diz Dobelli, de uma previsão do tipo "o dólar tem 30% de chance de entrar em colapso nos próximos cinco anos".

Espero que nada disso aconteça tão cedo. "A Arte de Pensar Claramente" é um bom antídoto para previsões de fim de ano, e se desejar um bom 2015 não adianta muita coisa, pelo menos podemos fazer um esforço para cair em menos ilusões.


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