Folha de S. Paulo


O peso da responsabilidade

Na vida política, poucas coisas podem ser tão sem charme quanto o equilíbrio e a moderação. Quem critica "os dois lados" tende a desagradar a ambos.

Um livro do historiador Tony Judt (1948-2010) tenta revalorizar três personagens da história francesa que assumiram os riscos da moderação.

Durante o século 20, a paisagem moral parisiense era um daqueles lugares em que "os fracos não têm vez", e enfrentar as invectivas de um Sartre ou da máquina intelectual do Partido Comunista (Louis Aragon, Roger Garaudy) exigia espíritos fortes, além de serenos, se possível.

Foi esse o caso de Albert Camus (1913-60), Raymond Aron (1905-83) e Léon Blum (1872-1950), analisados em "O Peso da Responsabilidade", livro já meio antigo de Tony Judt que sai agora no Brasil pela editora Objetiva.

Dos três, o político e literato Léon Blum é certamente o menos conhecido atualmente. Tendo começado sua carreira como uma espécie de dândi na "Belle Époque", ele se tornaria líder do Partido Socialista francês, nos tempos em que este ainda se chamava SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária).

Em geral fosco no estilo, Tony Judt não contém o seu entusiasmo ao narrar a resistência que Léon Blum opôs aos que queriam submeter seu partido às orientações de Lênin. No congresso de Tours, em 1920, deu-se a ruptura com os comunistas.

Na Revolução Russa, Blum viu uma espécie de aventura violenta, na qual os meios se confundiram com os fins; o objetivo final dos bolcheviques resumiu-se à pura conquista do poder absoluto, e sua tática seria a de mantê-lo a qualquer custo.

Blum chegou ao governo em 1936, na chamada experiência da Frente Popular; sem explicar muito os erros econômicos e políticos daqueles dois anos, Judt destaca que dali nasceu, por exemplo, o direito às férias para os trabalhadores franceses.

Com a derrota da França para Hitler, e a formação de um governo-fantoche em Vichy, Blum e seus correligionários terminaram presos ""ironicamente, acusados de "traição" pelos lacaios da Alemanha.

Foi a ocasião para outra passagem grandiosa na vida de Blum: submetido a um julgamento de cartas marcadas, o septuagenário defendeu-se com tal brilho que o tribunal teve de encerrar suas sessões.

Blum, que era judeu, terminou deportado para um campo de concentração nazista; não o mataram porque ele poderia ser refém valioso nas negociações de um armistício.

Coragem pessoal, coerência e equidistância também tiveram sua parte na vida de Camus. Diante de uma França dividida entre reprimir ou apoiar a causa da libertação da Argélia, nos anos 1950, o lugar do meio termo parecia praticamente impossível; torturadores e terroristas se enfrentavam –com intelectuais como Sartre defendendo alegremente o assassinato dos colonizadores.

Não foi pequeno o preço que Camus, argelino de nascimento, pagou por uma famosa frase contra isso.

"Bombas são jogadas nos bondes da Argélia. Minha mãe pode estar em um deles. Se isto é justiça, eu prefiro minha mãe", disse ele. Preferia não apenas sua mãe, mas princípios razoáveis, cuja aplicação, entretanto, não mais parecia possível naquela época. Camus já estava caindo em desgraça no meio intelectual, dada sua crescente condenação ao arbítrio soviético.

Cair em desgraça nesse ambiente nunca parece ter sido uma preocupação muito forte para Raymond Aron, que se tornou colunista num jornal de direita e procurou, sobretudo, compreender os dilemas reais (militares e econômicos) colocados pela Guerra Fria.

Daí o tema da "responsabilidade" que inspira o título do livro de Judt. Ele aprova sem reservas a ideia de que todo intelectual, ou crítico político, está obrigado a dizer o que faria se estivesse no lugar dos governantes a quem critica.

A exigência vale para Raymond Aron, que nunca se esquivou diante dessa pergunta; vale menos, entretanto, para Camus –que com excelentes motivos preferiu segurar sozinho alguns princípios básicos a se misturar na loucura geral.

A questão, na verdade, é meio capciosa. "O que você faria se estivesse no meu lugar?" A melhor resposta, penso, seria "mas o que você fez para chegar até aí?".

Conforme o caso, é mais irresponsável quem assume o poder ("aceito essa responsabilidade, muito obrigado a todos, etc.") do que quem se preserva o lugar da consciência crítica mais abstrata; este prefere ficar de "mãos limpas" –sabendo, de resto, que suas mãos podem muito pouco. coelhofsp@uol.com.br


Endereço da página: