Folha de S. Paulo


Marina, prós e contras

As bobagens criacionistas da religião me preocupam menos, no caso de Marina Silva, do que a esperteza de sua atuação política. Escrevi isso na semana passada, e tinha prometido continuar.

Não quero fazer um julgamento pessoal. Verifico, apenas, que o esforço de Marina tem sido o de desvincular-se do passado petista e da imagem de inflexibilidade ecológica, tomando o rumo de alianças à direita.

O interessante é que sua "marca", sua identidade, resiste a esse movimento. O que em outra candidatura seria visto como um grande embrulho de improvisos e contradições pode ser apresentado –e aí a esperteza– como sinal de convergência e inovação.

O feito (que não convence a todos) tem várias razões de ser, entre as quais a de que Marina Silva ainda guarda um capital de credibilidade própria. Mas existe também o impacto das manifestações de junho passado.

Como observou Eliane Brum, em artigo para o "El País", também naquele momento juntavam-se reivindicações e pontos de vista dos mais heterogêneos. Pautas de direita e de esquerda se misturavam nas ruas, numa rejeição equivalente a governos do PT e do PSDB.

Estava dada a oportunidade para alguém encarnar a ideia de uma "nova política", beneficiando-se da rejeição aos dois polos do sistema partidário brasileiro. O lema mantém-se muito vago, entretanto. Não, talvez, pelas razões que têm sido invocadas com mais frequência.

O que se diz, em geral, é que a expectativa marinista de governar com bons nomes de qualquer partido, com Serra ao lado de Suplicy, acaba sendo insustentável.

Haveria aqui –mais do que nas suas crenças evangélicas– um componente religioso na postulação de Marina. Os homens (e mulheres) de boa vontade, não importando seus compromissos e filiações de classe, podem militar pelo interesse coletivo.

Esse tipo de esperança deixa desconfiado todo analista político. Quem quer que tenha passado por um curso de sociologia, ou tenha folheado alguma coisa de Marx, sabe que os interesses de classe falam mais alto do que as intenções de fazer um governo "bom para todos".

Acontece que as coisas já não são tão simples. Foi-se o tempo em que era fácil criticar a "república populista" de 1945-1964 pela tentativa de conciliar interesses de classe incompatíveis por natureza.

Falava-se em "ditadura do proletariado" e "democracia burguesa", sem acreditar num meio termo durável entre os dois. Mas foi ficando claro (para mim pelo menos) que todo governo democrático sempre terá de conciliar, um pouco para lá, um pouco para cá, interesses diversos. A democracia sempre é "impura", desse ponto de vista.

Além disso, tanto à direita como à esquerda, ninguém se sente representado plenamente pelas forças partidárias do Congresso. Incompatíveis ou não, os desejos de tucanos e petistas esbarram no mesmo problema, a necessidade de alianças com forças políticas que só parecem representar a si mesmas.

A "nova política" teria, assim, condições reais de se desenvolver, apesar das críticas ao que há de vago nisso. Apostar num esquema de interesses de classe "puros" não corresponde muito a uma sociedade de grande complexidade, e menos ainda a um sistema político de incomensurável confusão.

Os compromissos de Aécio e de Dilma são, aliás, tão vagos quanto os de Marina. Não é aí que vejo o maior problema de sua "nova política".

O problema está, volto a dizer, na "esperteza" da candidatura. É a mesma esperteza que trouxe sucesso para Lula em 2002, aliás. Consiste –e não culpo ninguém por isso– no fato de que a popularidade do candidato, e o momento histórico da candidatura, chegaram mais cedo do que deveriam.

Numa situação ideal, o PT só estaria pronto para chegar ao Planalto depois de alcançar um peso decisivo no Congresso, conquistado de diretório em diretório, de bairro em bairro, espalhando-se um pouco como as igrejas evangélicas que se veem em todos os cantos do país.

A conjuntura eleitoral favorável, depois de oito anos de FHC, veio antes de isso acontecer. Marina talvez esteja repetindo Lula agora: a sua "Rede" nem começou, e há milhões votando nela.

Retórica à parte, é a "velha política" –voto sem organização–que parece dar as cartas mais uma vez.


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