Folha de S. Paulo


O vôo 1907

O maior acidente da aviação brasileira ocorreu na sexta-feira, dia 29, às vésperas do primeiro turno das eleições. O resultado das urnas ofuscou, inicialmente, o drama das famílias dos 154 mortos e as investigações das causas da tragédia. Nos últimas dias, contudo, o assunto teve mais visibilidade e ficaram evidentes os problemas da cobertura jornalística.

Acesso a informações

O primeiro grande empecilho em coberturas como esta é o acesso a informações oficiais e confiáveis. É compreensível a cautela das autoridades e das empresas envolvidas. Qualquer informação errada pode provocar pânico ou revolta.

Mas a população não pode ficar sem informações. O procedimento ideal é o receitado pelo editorial da Folha de sexta-feira: "As autoridades devem agir com transparência e sobriedade na apuração do acidente". Isso significa fornecer informações corretas com o máximo de brevidade para que não se dê espaço para os boatos e as especulações.

Os jornais acabaram destacando mais informações vazadas por fontes não identificadas que notícias oficiais. Embora as autoridades ainda não disponham de todos os dados necessários a uma conclusão, os meios foram abastecidos extra-oficialmente com dados que levaram o noticiário a praticamente concluir que os pilotos do Legacy são os culpados. A manchete de "O Estado de S. Paulo" de quarta-feira não deixa dúvida: "Legacy é culpado pela tragédia".

Isso, apesar da evidência de que as autoridades que investigam ainda têm mais interrogações que certezas. Um infográfico publicado pela Folha na sexta-feira mostrou que, de oito perguntas-chave para o esclarecimento do acidente, o que os investigadores dispõem até agora responde a apenas três delas. Neste ponto, a imprensa deve agir com obstinação, para exigir informações oficiais confiáveis e constantes, e com cautela, para não cair em tentação.

Conhecimento

Há o problema de fontes e há o problema de conhecimento. A imprensa apanhou, e continuará a apanhar, na cobertura de um assunto extremamente técnico e complexo. O conhecimento acumulado nas Redações na área de aviação é baixíssimo. No caso da Folha, quase inexistente. Os repórteres envolvidos tiveram que desbravar em poucas horas um setor que exige especialização, mercadoria cada vez mais rara nas Redações.

Um leitor, que não identifico porque não obtive a sua autorização, se apresentou como aviador e fez uma série de observações que resumem as mensagens que recebi: "Tempos atrás, quando trabalhava em transporte aeromédico, perguntei para meus colegas de empresa, médicos e enfermeiras, se a imprensa era tão imprecisa em relação às notícias a respeito de medicina quanto o era a respeito de aviação, e fiquei pasmo com a resposta afirmativa. Temos lido com espanto, eu e vários outros profissionais da aviação, informações (algumas citando "fontes especializadas'), distorcidas e bastante especulativas a respeito do acidente".

Sensibilidade

O último aspecto tem a ver com a falta de sensibilidade que nos assoma em momentos delicados como este. A linha entre o dever de informar sobre uma tragédia de interesse público e o respeito aos direitos dos que querem sofrer longe das lentes e dos microfones é muito tênue e exige dos jornalistas grande respeito e sensibilidade. A pressa acaba sendo uma péssima conselheira.

É claro que esta avaliação é subjetiva. Eu fiquei chocado na sexta-feira, dia 29, quando assistia o "Jornal da Globo", por causa de um detalhe. A principal reportagem informava que até a meia-noite o Boeing não tinha sido localizado e que cinco aeronaves da FAB continuariam as buscas durante a madrugada. Havia, para quem acompanhava o jornal, alguma esperança. Mas em seguida entrou uma reportagem que foi uma ducha de água fria: "Na história da aviação brasileira, os dois acidentes mais graves não deixaram sobreviventes". E descrevia dois acidentes aéreos.

A reportagem estava correta, mas me pareceu inoportuna. Por que não aguardar um pouco mais por novas informações? Imaginei a decepção de um parente de algum passageiro acompanhando, ainda esperançoso, o telejornal.

Como disse, são avaliações subjetivas. Mas que devem fazer parte das nossas preocupações quando cobrimos tragédias como a do vôo 1907.


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