Folha de S. Paulo


Extermínio

Jhonata Dalber Matos Alves, 16 anos, provavelmente não imaginava o quanto poderia ser arriscado ir à casa da tia, no Morro do Borel, para pegar alguns saquinhos de pipoca para a festa da família, na noite da última quinta-feira (30).

Certamente, quando percorria as vielas, passava pela algazarra dos botequins, cruzava com trabalhadoras que voltavam para casa, não lhe ocorreu que era uma vítima em potencial, como tantos ali.

No Borel, como na Rocinha de Amarildo, no Morro da Congonha de Claudia Silva Ferreira, na Manguinhos do xará Jonathan Oliveira: vítimas em potencial pela cor de suas peles e por suas origens.

Será que o adolescente teve tempo de se dar conta dos riscos que corria por ser negro, pobre e morador de favela no Rio de Janeiro? Do quanto a morte está em cada esquina, em cada olhar suspeito, insinuação, abordagem. Jhonata foi assassinado com um tiro de fuzil na cabeça por um PM que confundiu os saquinhos de pipoca de sua tia com drogas.

Um dia antes, numa operação de guerra montada pelas polícias Militar e Civil, que deixou milhares de moradores da Maré na linha de tiro, o ajudante de pedreiro José Silva, 40 anos, morreu após ser baleado no rosto. José voltava do trabalho para casa, na favela da Nova Holanda.

Não sei José, mas nós deixamos aos seus seis filhos a nossa violenta herança escravocrata, racista, autoritária e classista, que lhes imporá a luta cotidiana pela sobrevivência.

As políticas de Segurança Pública do Rio e da maioria dos Estados brasileiros são traduções dessa herança. A PM, por exemplo, surge da criação da Guarda Real de Polícia, instituída em 1809, um ano após a chegada da família real portuguesa.

A preocupação era manter o controle sobre a massa de negros livres e escravizados que perambulavam pela corte. A elite colonial estava assombrada com a Revolução Haitiana, de 1791.

O brasão da PM ainda carrega as iniciais da guarda real. As armas, no centro do emblema, são cercadas pela coroa e por pés de cana e café. Expressão da defesa do status quo.

Na ditadura civil-militar, as forças policiais aprimoraram seus mecanismos de perseguição e repressão, mas principalmente adotaram a lógica da guerra ao inimigo interno.

Superar essa herança é essencial para enfrentarmos a criminalização da pobreza e o extermínio nas favelas. Os policiais, majoritariamente negros, pobres e favelados, são algozes e vítimas dessa política de segurança que os sacrifica: eles matam e morrem muito. Até junho deste ano, 59 foram assassinados no Rio.

Não há vencedores nessa guerra insana. Precisamos de outra polícia, que não seja violadora, mas promotora dos direitos humanos.


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