Folha de S. Paulo


Alma encravada na carne

Reprodução
Cena do filme Litzsomania

Psicodélico e priápico -assim é o Franz Liszt de Ken Russell, em "Lisztomania". O filme foi lançado em 1975, na esteira do sucesso de sua versão cinematográfica para a ópera-rock "Tommy", da banda britânica The Who, e também traz o vocalista Roger Daltrey como o protagonista, desta vez no papel do compositor húngaro.

A relação com a música, em seus diferentes registros (do erudito ao pop), percorre a obra do cineasta inglês. Depois de um documentário sobre Elgar, ele fez para a TV, em 1965, "The Debussy Film", belo longa-metragem em preto e branco em que a metalinguagem -um diretor roda um filme sobre e com o compositor francês- dá ares de "nouvelle vague" a essa realização que pode ser vista na íntegra pelo canal YouTube. O diretor produziu ainda "Song of Summer" (1968), sobre o compositor Frederick Delius.

Mas é com "Mahler - Uma Paixão Violenta" (1974) que Russell cria uma linguagem anárquica e onírica para tratar da música, com o atormentado compositor tendo visões de Alma (a adúltera mulher de Gustav Mahler) dançando sobre seu caixão ladeada por nazistas -referência às pulsões mórbidas que, presentes na obra do músico e na Viena "fin de siècle" (fim de século, em francês), iriam desaguar na perversão hitlerista.

Esse tipo de anacronismo histórico e estético dá o tom de "Lisztomania", em que o compositor surge como um pop star que assedia mulheres da nobreza europeia e é assediado por groupies (o título do filme vem do termo que se usava na época de Liszt para definir o "frisson" provocado por seu virtuosismo ao piano).

Numa das sequências mais lisérgicas, Liszt viaja à Rússia em turnê e encontra uma princesa baseada em Carolyne zu Sayn-Wittgenstein, com quem ele de fato manteve uma relação conjugal até a morte.

Após passar por uma antecâmara em que nádegas exalam gases mefíticos e por uma dança satânica em que seu pênis se transforma num falo descomunal, Liszt celebra com ela o pacto mefistofélico de entregar sua alma em troca do "poder de compor música para acalmar a besta selvagem", de purgar sua "alma encravada na carne".

Igualmente mefistofélica é a figura de Richard Wagner, que foi genro de Liszt e surge ao lado da malévola Cosima (filha do músico húngaro) como um demiurgo que cria um Frankenstein nazista -numa paródia do uso ideológico que Hitler fez da mitologia nórdica do compositor alemão.

Com direito ao beatle Ringo Starr no papel do Papa e a Rick Wakeman, papa do rock progressivo, como o monstro wagneriano, "Lisztomania" traz pouco da música romântica de Liszt, preferindo mergulhar no fenômeno que leva as massas à idolatria dos gênios e os gênios às tentações da mitomania.

UM FILME

LISZTOMANIA
1975, R$ 39,90, DIR.:KEN RUSSELL

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Divulgação
Capa do livro O Reino

UM LIVRO

O REINO
Emmanuel Carrère; tradução de André Telles (Alfaguara, 462 págs., R$ 54,90)

Possivelmente o maior escritor francês da atualidade, igualmente capaz de fazer ficção e de dotar de força romanesca uma investigação jornalística ou histórica, Emmanuel Carrère aborda aqui os primórdios do cristianismo com uma erudição atravessada por suas próprias inquietações pessoais, que o levaram de uma fé fervorosa ao agnosticismo.

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UM DISCO

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Capa do disco Schubert

SCHUBERT - STRING QUINTET & LIEDER
Quatuor Ebène (Erato, R$ 36,90)

O jovem conjunto de cordas francês Ebène protagonizou o melhor concerto do ano até agora, na Sala São Paulo, com quartetos de Debussy e Beethoven. Este disco não faz por menos: traz o "Quinteto D. 956" de Schubert, com Gautier Capuçon como violoncelo extra, além de "lieder" (canções) do compositor, entre elas "A Morte e a Donzela", com os cantores Matthias Goerne e Laurène Durantel.

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UMA SÉRIE

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Cena da série Raízes, de David Greene, 1970

RAÍZES
David Greene, Gilbert Moses, John Erman e Marvin J. Chomsky (Cult Classic, R$ 76,90, 4 DVDs)

Quando exibida no Brasil, essa minissérie televisiva dos anos 1970 fez sucesso estrondoso, repetindo o efeito que teve nos EUA, onde coincidiu com a emergência de novos movimentos pelos direitos civis. Baseada em livro homônimo de Alex Haley, narra a história de gerações de africanos, desde a deportação como escravos no século 18 (entre violências e estupros) até o Apartheid do século 20. Melodramático e eficaz.


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