Folha de S. Paulo


Paisagens imaginárias

O poeta e ensaísta Augusto de Campos –tema da retrospectiva "Rever", em cartaz no Sesc Pompeia– acaba de lançar "Música de Invenção 2", que dá continuidade às reflexões sobre composição contemporânea (sobretudo erudita) publicadas em livro homônimo de 1998. O volume sai na mesma semana em que ocorreu a terceira Conferência Internacional MultiOrquestra, no Sesc Bom Retiro (dias 10 a 12 de maio).

Nesse encontro, promovido pelo Ministério da Cultura e pelo British Council sob o tema "Orquestra: Modo(s) de Usar", a mesa mais candente discutiu a programação dos repertórios sinfônicos. Nela, o crítico João Marcos Coelho abordou o eterno dilema entre atender à expectativa do público –em geral conservador, principalmente no Brasi– ou propor peças contemporâneas, ousando contrariar essa expectativa com risco de ver cair uma audiência que seria a contrapartida de financiamentos públicos e leis de incentivo cultural (numa clara distorção mercadológica da finalidade desses incentivos).

Marlene Bergamo/Folhapress
O poeta e ensaísta Augusto de Campos-tema da retrospectiva
O poeta e ensaísta Augusto de Campos-tema da retrospectiva "Rever", em cartaz no Sesc Pompeia

Coincidentemente, os ensaios de Augusto de Campos são atravessados por essa questão -seja nas análises do "desmesurado" Stockhausen, seja nas entrelinhas de um texto que trata do "músico-poeta" provençal Guillaume de Machaut (século 14), revalorizado por "modernos radicais como Varèse, Boulez, Ligeti".

Em "Cruzadas, Cruzamentos e Encruzilhadas", em meio a surpreendentes aproximações de Gerswhin e Schoenberg, ele lamenta o pressuposto das instituições culturais brasileiras de que a plateia seria "deficiente artístico-auditiva, inabilitada-crônica para escutar peças produzidas há quase um século", ironizando o fato de um filme para público infantil, como "Fantasia" (1940), de Walt Disney, já incluir em sua trilha sonora a estrepitosa "Sagração de Primavera" (1913), de Stravinsky.

Apaixonado por jazz e pelo repertório pop inventivo, o autor de "Balanço da Bossa" não ignora a distinção de registros: "Mais intuitiva e instintiva, a música popular nos leva do corpo à vida, à vivência, aos afetos. A erudita nos eleva a outras paisagens imaginárias, que merecemos vislumbrar: tem algo a ver com o aquém ou o além-vida".

E os ensaios sobre a norte-americana Ruth Crawford, a germano-americana Johanna Beyer, a cubana (e negra) Tania León e a finlandesa Kaija Saariaho –na linhagem da genial russa Galina Ustvólskaia– têm por efeito desmentir a queixa (muito presente na Conferência MultiOrquestra) de que na cena erudita não há nem mulheres nem afrodescendentes.

Em vez de justificar a pouca ousadia alegando falta de formação do público (e de seus próprios músicos) ou de inclusão social –que não são tarefa precípua do meio musical, mas do Estado–, gestores de orquestras e instituições deveriam fazer de "Música de Invenção 2" seu manual de guerrilha.

MÚSICA DE INVENÇÃO 2
Autor Augusto de Campos
Editora Perspectiva (2016, 144 págs., R$ 49)

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Conexões

LIVRO

MÚSICA DE INVENÇÃO
Esgotado, mas disponível em sebos, volume inclui textos sobre compositores vanguardistas como Satie, Webern, Cage e Varèse.
Autor Augusto de Campos
Editora Perspectiva (1998, 280 págs., esgotado)

EXPOSIÇÃO

REVER AUGUSTO DE CAMPOS
Com curadoria de Daniel Rangel, retrospectiva cobre 65 anos das criações "verbivocovisuais" do poeta, ensaísta e tradutor que representa a última vanguarda brasileira: a poesia concreta.

Sesc Pompeia - área de convivência. R. Clélia, 93, Água Branca, região oeste, tel. 3871-7700. Ter. a sáb.: 10h às 21h. Dom.: 10h às 19h. Até 31/7. Livre. GRÁTIS d i f w

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DISCO

CO-BRA PROJECT
Em 2014, o grupo coreano Jeong Ga Ak Hoe se encontrou no Brasil com músicos como Ari Colares e Benjamim Taubkin, que concebeu esse projeto de intercâmbio entre as duas tradições, mesclando composições de Baden Powell, Vinicius de Moraes ou Milton Nascimento a peças clássicas da Coreia com lindos arranjos, vocais e vocalises.

Vários (Núcleo Contemporâneo, R$ 29,90)

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LIVRO

1913 - ANTES DA TEMPESTADE
O ensaísta alemão descreve, mês a mês, o ano que precede a Primeira Guerra Mundial. Do momento em que um delinquente chamado Louis Armstrong ganha seu primeiro trompete, numa casa de correção, ao brinde de Ano-Novo de intelectuais e artistas confiantes no futuro, Illies mostra como sempre podemos estar, sem saber, bailando na boca vulcão.

Florian Illies; tradução de Silvia Bittencourt (Estação Liberdade, 368 págs., R$ 52)


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