Folha de S. Paulo


Pacto sinistro

"Mephisto" (1981), do diretor húngaro István Szabó, é uma das mais recentes e melhores variações sobre o mito de Fausto. Na lenda original alemã, um médico e alquimista medieval vende sua alma a Mefistófeles em troca de 24 anos de saber, poder, glória e prazer.

A história teve várias versões ao longo do tempo, desde a tragédia do inglês Christopher Marlowe (contemporâneo de Shakespeare) e o poema dramático de Goethe (no século 19) até as versões mais modernas e fragmentárias de Paul Valéry e Fernando Pessoa.

Inicialmente uma fábula teológica sobre a soberba humana, Fausto foi se transformando em afronta metafísica e mito da emancipação do sujeito em relação a Deus: o desejo fáustico de controlar as forças da natureza seria expressão da revolta da criatura contra a onipotência do Criador, coincidindo com o surgimento das ciências modernas.

Não é de admirar que Fausto tenha se tornado metáfora da Alemanha nazista, tanto pela ambição demoníaca de Hitler quanto pela maneira como o povo germânico hipotecou seu espírito a uma ideologia cujo âmago (outro elemento fáustico) era a eugenia, a pseudocientífica manipulação genética para criar uma raça pura.

O filme de Szabó é uma adaptação do livro homônimo de Klaus Mann (1906-1949) –filho do escritor Thomas Mann, também autor de um romance sobre a lenda, "Doutor Fausto" (1947). Enquanto este parte da figura imaginária de um compositor, Klaus tomou por base um artista real: seu cunhado Gustaf Gründgens, ator de teatro que ascendeu durante o nazismo.

Em "Mephisto", ele se chama Hendrik Höfgen e é vivido na tela pelo austríaco Klaus Maria Brandauer, numa interpretação superlativa,
certamente seu maior trabalho ao lado de "Coronel Redl" (1985), também de Szabó.

A lenta transformação do ator provinciano dos cabarés esquerdistas da República de Weimar, amante de uma dançarina negra, em ator preferido de um marechal inspirado em Göring (um dos principais asseclas de Hitler) passa justamente pelo papel de Mefistófeles –em sucessivas encenações que lhe valem a condição de rosto oficial do regime e lhe dão poder na burocracia cultural.

Invejado e temido em público, mas acuado e humilhado em suas audiências com o marechal (verdadeiro Mefistófeles em cena), o vaidoso Höfgen se casa por conveniência com uma mulher da elite pró-nazi, extradita a amante negra e vai abandonando os amigos judeus que tenta proteger, mas que não hesita em renegar diante das ameaças de punição.

Seu contraponto é o ator Hans Miklas, entusiasta sincero do credo nacional-socialista. Preterido e empobrecido, ele se decepciona com os destinos do regime, sugerindo que o pacto do povo alemão não se deu entre gênios fáusticos e líderes mefistofélicos, mas entre oportunistas e celerados.

*

FILME

MEPHISTO
DIRETOR István Szabó
DISTRIBUIDORA Silver Screen (1981, DVD R$ 39,90)

-

LIVROS

MEFISTO - ROMANCE DE UMA CARREIRA
O romance de Klaus Mann foi publicado em 1936, mais de dez anos antes do livro de seu pai também baseado no mito de Fausto.
AUTOR Klaus Mann
TRADUTOR Erlon José Paschoal
EDITORA Estação Liberdade (2000, 320 págs., R$ 45)

DOUTOR FAUSTO
Na obra-prima do Nobel de 1929, compositor erudito celebra pacto com Mefistófeles em troca da genialidade durante delírio sifilítico.
AUTOR Thomas Mann
TRADUTOR Herbert Caro
EDITORA Companhia das Letras (2015, 624 págs., R$ 79,90; e-book R$ 39,90)

CINEMATOGRAPHOS
Essa alentada seleção das mais de 2.700 críticas de cinema que Guilherme de Almeida publicou na coluna "Cinematographos", nos anos 1920/40, mostra a sensibilidade do poeta modernista para a nascente sétima arte. Ele defende a autonomia da sintaxe visual em relação à palavra no momento em que surge o cinema falado, mas reconhece a genialidade de "Cidadão Kane", de Orson Welles, além de acompanhar as

Guilherme de Almeida; org. de Donny Correia e Marcelo Tápia (Casa Guilherme de Almeida/Editora Unesp, 679 págs., R$ 95)

MILLÔR: OBRA GRÁFICA
Cronista e humorista, criador dos aforismos mais cáusticos da literatura brasileira, Millôr Fernandes (1923-2012) foi também autor de extensa produção de charges de caráter satírico, aqui reunidas. Mesclando desenho e palavra, seu traço tem afinidades com as ironias visuais de Saul Steinberg, com as caricaturas grotescas de George Grosz e

Org. de Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires (IMS, 288 págs., R$ 129,90)

*

DISCO

WATER

O projeto da pianista francesa Hélène Grimaud expõe de modo enviesado seu ativismo ecológico. Ela escolheu peças inspiradas na água e que, ouvidas em conjunto, podem remeter aos problemas da escassez e da poluição hídrica: obras de Debussy, Ravel, Berio e Takemitsu, entre outros. São memórias e impressões líricas desse elemento primordial, obviamente sem nenhum vínculo com a ecologia contemporânea e entremeadas por melodias sintetiza

Hélène Grimaud (Deutsche Grammophon, R$ 32,60)


Endereço da página: