Folha de S. Paulo


Exercício de admiração

O último filme de Ettore Scola, morto no dia 19, não é certamente o mais representativo de sua filmografia. Afinal, "Que Estranho Chamar-se Federico!" é uma homenagem a Fellini, de quem o diretor italiano foi amigo e colaborador. Quando um grande artista faz exercícios de admiração, porém, sempre fala algo de si mesmo nas entrelinhas.

Aqui, vai bem além disso: o filme de 2013 –disponível em DVD e de novo em cartaz até quinta-feira (4) no Cine Reserva Cultural, em homenagem a Scola —revela ao menos parcialmente a filiação estética do diretor.

Cristina di Paolo Antonio/Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "Que Estranho Chamar-se Federico", em cartaz no Reserva Cultural

Com título extraído do poema "De Outro Modo", do espanhol Federico García Lorca, sua linguagem oscila entre documentário e ficção, com atores representando as personagens, imagens de filmes de Fellini e (em menor grau) do próprio Scola, de depoimentos, entrevistas e cenas de set de filmagem.

Todavia, nem as cenas representadas têm ambição de verossimilhança, nem as imagens documentais pretendem compor um retrato fiel à biografia do diretor de "Amarcord". O recorte temporal estabelece justamente as confluências entre ambos, começando pela atuação como desenhistas do semanário satírico "Marc'Aurelio", no qual Fellini entrou em pleno fascismo e Scola oito anos depois, já no pós-guerra.

Os desenhos que eles continuaram fazendo para os planos de filmagens de seus respectivos longas, aliás, são um dos elementos narrativos que pontuam essa camaradagem estética, a exemplo do narrador felliniano que Scola introduz para narrar sua relação com o amigo.

Os passeios de carro que Fellini fazia pela noite de Roma, dando carona e conversando com prostitutas, artistas saltimbancos e vagabundos, são momentos que Scola usa para expor uma poética ditada por um amor voluptuoso pela vida. Na sua visão, porém, a volúpia não corresponde a um barroquismo circense, e sim à necessidade de contrapor essas personagens grotescas à família, à Igreja e ao Estado (onipresentes em sua obra) para buscar a transgressão como traço característico de todo artista.

Talvez essa seja uma visão particular de Scola, diretor muito mais político do que Fellini –algo que fica patente no momento em que ambos discutem a participação do colega, 11 anos mais velho, no filme "Nós que Nos Amávamos Tanto" (1974), em que Scola narra a história de três personagens desde a resistência ao fascismo até os anos 1970.

Em "Que Estranho Chamar-se Federico!", a amizade não oblitera a diferença, sempre tratada com uma generosidade que, esta sim, irmana os dois diretores e é celebrada na comovente colagem final de filmes de Fellini, ao som do tema de "Oito e Meio".

FILMES

QUE ESTRANHO CHAMAR-SE FEDERICO!
QUANTO: R$ 39,90
DIREÇÃO: ETTORE SCOLA
GRAVADORA: IMOVISION (2012, DVD)

EM CARTAZ - O Cine Reserva Cultural exibe "Que Estranho Chamar-se Federico!" até quinta (4), com sessões às 21h20, e a Caixa Belas Artes apresenta "Um Dia Muito Especial", com sessões às 15h30

UM DIA MUITO ESPECIAL
QUANTO: R$ 20,90
DIREÇÃO: ETTORE SCOLA
GRAVADORA: FOCUS/FLA

Nesse filme de 1977, Sophia Loren e Marcello Mastroianni são a dona de casa e o homossexual que se veem solitários e solidários, em Roma, no dia da visita de Hitler a Mussolini.

FEIOS, SUJOS E MALVADOS
QUANTO: R$ 39,90
DIREÇÃO: ETTORE SCOLA
GRAVADORA: MAGNUS OPUSSH NOVODISC

A pobreza escatológica de família que vive em cortiço romano expõe, no filme de 1976, outra filiação de Scola: o cinema político de Pasolini, calcado no efeito de choque.

LIVROS

TEORIA DA RELIGIÃO
QUANTO: R$ 37
AUTOR: GEORGES BATAILLE; TRADUÇÃO DE FERNANDO SCHEIBE
EDITORA: AUTÊNTICA, 144 PÁGS.

O francês Bataille (1897-1962) foi um escritor inclassificável que transitou entre ensaio e ficção, marxismo, antropologia e psicanálise para analisar a relação entre o erotismo, o sagrado e o profano. No livro póstumo (que inclui uma conferência e o esboço de uma história das religiões), expõe a dimensão sacrificial da sociedade de consumo.

DISCO

NU - Naked Universe
A cantora Ligiana Costa e o músico e "sound designer" Edson Secco, ambos compositores, unem-se aqui para formar o duo que dá título a esse disco surpreendente, que alterna letras em português e inglês, além de espanhol e francês. O registro eletrificado, na voz e nos arranjos, tem referências que vão do erudito ao rap, da "chanson française" ao lirismo pop da islandesa Björk.

NU - Naked Universe
QUANTO: R$ 26
GRAVADORA: TRATORE


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