Folha de S. Paulo


Viagem profética

Missionário, teólogo, diplomata e orador, o padre Antonio Vieira (1608-1697) deixou cerca de 200 sermões, além de cartas e escritos proféticos, como "História do Futuro" e "Apologia das Coisas Profetizadas".

Na nota introdutória de uma das primeiras edições desse tesouro que são os "Sermões", Vieira diz que, ao publicá-los, começava "a tirar da sepultura estes meus borrões, que sem a voz que os animava, ainda ressuscitados, são cadáveres".

Há um tanto de encenada modéstia na declaração, outro tanto de lendária verdade. Segundo Adma Muhana, uma das maiores especialistas em Vieira no Brasil, diz-se que o poder de sua oratória era tamanho que, em pleno Carnaval romano, parte dos foliões abandonou os folguedos para assistir a Vieira no púlpito!

Reproduc'ao
Fique em casa - O padre Antonio Vieira, autor dos
O padre Antonio Vieira em pintura sem data ou autor conhecido

De todo modo, se a letra dos sermões sobreviveu à presença física do orador —a ponto de Fernando Pessoa ter descrito Vieira como "imperador da língua portuguesa"—, a musicóloga e cantora lírica Anna Maria Kieffer dá agora uma nova voz à sua escrita no disco "Antonio Vieira: do Tejo ao Amazonas".

O projeto nasceu por iniciativa do professor de história Joaci Pereira Furtado, que selecionou os textos musicados por ela na celebração dos 400 anos de nascimento de Vieira, que foi missionário no Maranhão e morreu em Salvador. Dessa encenação teatral e musical derivou o disco que será lançado nesta semana.

Trechos de seis sermões são recitados, em português, pelo ator lusitano Luis Lima Barreto sobre "paisagens sonoras" eletroacústicas escritas por Vanderlei Lucentini. Muito bem editado, o encarte do trabalho apresenta as passagens recitadas, permitindo seguir a retórica hipnotizante de Vieira.

Nos trechos em latim —conceitos da prédica ou citações bíblicas—, surgem, respectivamente, as vozes do Coro de Câmara da Unesp, entoando textos modalizados para canto gregoriano pelo regente Vitor Gabriel, e de Anna Maria Kieffer (meio-soprano). Também despontam na obra a soprano Camila Bruder, o tenor Alessandro Greccho e o baixo Eduardo Janho-Abumrad, além do percussionista Elson Leonardo.

O encontro entre o cantochão e timbres sintetizados cria uma estranha e cativante confluência entre o mistério medieval e nosso vazio teológico, ambos mediados pela agudeza barroca de Vieira.

Ele fala do pecado da omissão e da gatunagem dos poderosos e desafia Deus no contexto da invasão holandesa, que obliterava sua profecia do Quinto Império como destino messiânico de Portugal, da qual os índios brasileiros, tema do último sermão, seriam um dos pilares.

Conexões

DISCO

Antonio Vieira — Do Tejo ao Amazonas — muito bom

ARTISTA: Anna Maria Kieffer
GRAVADORA: Akron (R$ 40)

Lançamento do álbum

Terça-feira (1º/12), às 19h30, no MIS (Museu da Imagem e do Som), com apresentação ao vivo das obras contidas no trabalho.

MIS. Av. Europa, 158, Jardim Paulista, região oeste, tel. 2117-4777, GRÁTIS.

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DISCO

Schubert: Arpeggione — ótimo

Gautier Capuçon e Frank Braley (Erato/Warner Music, R$ 30,90)

Da parceria entre o violoncelista Capuçon e o pianista Braley, ambos franceses, surge essa interpretação, cheia de lirismo e simplicidade, de uma das peças mais célebres de Schubert: a "Sonata para Arpeggione e Piano D. 821", que deve seu título ao fato de ter sido encomendada para esse instrumento, similar à viola da gamba. Completam o registro obras de Schumann, Debussy e Britten.

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LIVRO

O Abuso da Beleza — muito bom

Arthur C. Danto; tradução de Pedro Süssekind (WMF Martins Fontes, 216 págs., R$ 39,90)

Filósofo da arte, Danto (1924-2013) discute a destruição do conceito clássico do Belo na arte moderna. Embora a argumentação se dê a partir de artistas contemporâneos, cada capítulo encerra informações preciosas sobre a historicidade das noções da beleza e do "sublime" —conceito antigo que, resgatado pelo romantismo, permite diferenciar a vanguarda americana da europeia.

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FILME

Sem Pena — muito bom

Eugenio Puppo (Bretz Filmes, DVD R$ 49)

Longa-metragem sobre o sistema carcerário e judiciário brasileiro, "Sem Pena" adota linguagem inusual: os entrevistados (carcereiros, presos, juristas, intelectuais) não aparecem e suas vozes surgem sobre cenas que buscam estabelecer analogias com as palavras. Com esse artifício, o diretor Eugenio Puppo desnaturaliza a sintaxe direta do documentário para criticar a naturalização cotidiana da violência.

Divulgação
Fique em casa - Cena do documentario
Cena do documentário ""Sem Pena"

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